J.G.Bellet, “Family Character and Family Region”

Caráter de Família

Gênesis 11:28

Como sabemos, houve o dia da visitação à casa de Terá. A família de Sem havia se corrompido bastante e nos dias de Terá, o sexto ou sétimo depois de Sem, eles estavam servindo a falsos deuses. Mas o poder do Espírito e a chamada do Deus da glória visitou os ouvidos e o coração de Abrão, filho de Terá, e o separou daquela corrupção.

Sabemos também que uma influência piedosa decorrente disso se estendeu à família, e Terá, o pai, Sara, a esposa e Ló, o sobrinho, uniram-se a Abrão neste sentido, e todos eles deixaram juntos a terra da Mesopotâmia. Todavia, Naor, outro dos filhos de Terá, não foi influenciado. Ele estava confortavelmente estabelecido com sua esposa em sua casa, e permaneceram em casa quando Terá, Abrão, Sara e Ló partiram da terra de seus pais (Gn 11).

Isso é algo para ser bem observado, pois todos os dias podemos testemunhar uma semelhança disso. Alguém em uma família toma-se o primeiro alcançado pelo divino poder, e então a religião de família, ou o conhecimento do Senhor Jesus no lar, se espalha; mas alguns continuam sem ser influenciados.

Evidentemente sabemos que cada alma que é vivificada deve ser igualmente objeto do eficaz e velado envio e ensino do Pai (Jo 6:44-45). Mas refiro-me aqui à história ou ao caráter evidenciado nesta cena. E, como vimos na história daquele lar, Naor permanece indiferente àquele dia da visitação. Ele e sua esposa continuam na Mesopotâmia e ali prosperam. Eles têm filhos; suas propriedades e bens aumentam. Contam com uma jornada fácil e respeitável por este mundo; mas não crescem no conhecimento de Deus, e nem dão qualquer testemunho, ou se o fazem, é no mínimo um pequeno e indistinto testemunho ao Seu Nome.

Assim foi formado o caráter da família de Naor. Eles não viviam em uma total escuridão, como o povo de Canaã, descendentes de Cão, entre os quais Abrão agora passava a peregrinar. Eles tinham alguma medida de luz derivada de sua ligação com Terá e Abrão, e por serem descendentes de Sem; mas tudo isso estava tristemente obscurecido pelos cobiçados princípios do mundo, do qual eles não quiseram se separar. E assim todo um status e caráter de família iam sendo formados.

Este é um assunto sério – e todo esse princípio é algo que acontece diariamente entre nós, e um objeto de constante aplicação à nossa consciência.

Vamos perder esta família de vista por alguns momentos, pois evidentemente eles não são o objeto da atenção direta do Espírito Santo, mas por estarem ligados a Abrão poderão, naturalmente, voltar à cena. Eventualmente, de seu distante lugar de peregrinação, Abrão acaba recebendo notícias deles (Gn 22).

Betuel filho de Naor- um de seus muitos filhos e aquele que aparece com mais detalhes. Ele havia prosperado no mundo e, apesar de ser talvez um homem de pouca energia ou caráter, teve um filho chamado Labão que, considerando tudo o que possuía, evidentemente sabia muito bem como cuidar de seus negócios e como progredir de uma maneira bem vantajosa nesta vida. Parece, como já dissemos, que ele conhecia bem o valor do dinheiro; pois o simples vislumbre do ouro era capaz de fazê-lo abrir a boca com calorosas e religiosas manifestações de boas vindas, até mesmo a um estranho (Gn 24). Aqui, porém, chegamos a um período na história dessa família que deve ser atentamente considerado.

Uma nova energia do Espírito estava a ponto de visitá-la. Como já observei, podemos presumir que aquela família não se encontrava na completa escuridão dos cananitas, e nem na simples condição idólatra da casa de Terá, quando o Deus da glória chamou Abrão (Js 24). Eles haviam sido colocados sob uma certa medida de luz, e introduzidos sem uma certa posição professa, conforme se pode deduzir pelas palavras e pela atitude de Abrão (Gn 24:4). Mas sendo assim, sendo um lar professo de um certo modo separado da condição de trevas dos homens deste mundo, passa a ser um assunto sério repararmos na natureza da visitação do Espírito àquela família, pois veremos tratar-se de uma visitação ou poder separador. Da mesma maneira como o chamado do Deus da glória já havia transtornado o andamento das coisas na casa de Terá, agora também a missão de Eliézer transtornava o cotidiano da casa de Betuel. Um dia Abrão fora separado de sua casa e de seus parentes, e o mesmo iria acontecer agora com Rebeca; tudo isso deixando a forte impressão de que tanto uma respeitável família professa, como uma família mais mundana ou idólatra, podem precisar ser visitadas pela mesma energia do Espírito.

Trata-se de um pensamento bem sério. É um poder perturbador ou separador que agora entra nessa família, e não simplesmente um poder edificador ou confortador. Há um significado nisto, creio eu. O ministério de Eliézer, servo de Deus tanto quanto de Abrão, era chegar à casa de Betuel para tirar Rebeca de lá, e para guiá-la naquela feliz jornada na qual o chamado do Deus da glória havia conduzido Abrão duas gerações antes. Creio mesmo haver nisto uma lição que deve ser objeto de muita meditação. É preciso que uma decente família professa seja afetada, e um novo ato de separação seja produzido em seu meio.

Mas há ainda uma outra lição nessa história. Rebeca sai, conforme sabemos, atendendo a esse chamado. Mas seu caráter já havia sido formado, como mais ou menos acontece com todos nós antes de nos convertermos. Chega a hora do avivamento. Chega o chamado separador. O chamado do Senhor, com seu poder separador, é atendido. Mas esse chamado nos encontra já com um certo caráter formado, com determinados modos e com uma determinada formação do intelecto. Nos encontra, talvez, cretenses (Tt 1:12), ou irmãos ou irmãs de Labão, ou coisa semelhante, e “os cretenses são sempre mentirosos”. O caráter e intelecto derivados da natureza, da educação, ou dos hábitos familiares, são coisas que carregamos conosco depois de termos nascido do Espírito, e as carregamos através do deserto, da Mesopotâmia até chegarmos à casa de Abrão.

Isto também é um assunto sério. É algo sério, como já observei, que uma respeitável família professa seja visitada por uma energia do Espírito, não meramente edificadora, mas separadora. E, é algo sério, como tenho estado a descrever, que mesmo com o poder do Espírito que vivifica ou converte, a natureza, ou a força dos antigos hábitos e educação, ou de um caráter de família, permanecerá arraigada. E são estas as importantes lições que a história de Rebeca nos ensina.

Não preciso mais que brevemente falar de como foi o seu caminho nas etapas futuras de sua vida. Trata-se de uma história bem conhecida entre nós, que revela de forma triste aquilo que podemos chamar de caráter de família. Labão, seu irmão, com quem ela cresceu e que era evidentemente a influência mais ativa na casa de seu pai, era um homem mundano, esperto e perspicaz. E a única grande ação na qual Rebeca foi chamada a tomar parte dá ocasião a ela para exercitar os mesmos princípios. Ao buscar a bênção para seu filho Jacó, vemos esse fermento, à moda de Labão, trabalhando poderosamente. O caráter de família revela-se, então, de forma triste. A prontidão da natureza em agir e tomar seu próprio caminho se mostra bastante ativa. Rebeca tinha um intelecto muito pouco habituado a descansar na suficiência de Deus, e por demais viciado a calcular e confiar em suas próprias maquinações.

Nada temos a fazer senão vigiar contra a tendência e o hábito peculiar de nosso próprio intelecto – a repreender a natureza com rigor, a fim de nos mantermos sãos ou moralmente sadios na fé (Tt 1:13); não para justificarmos nosso intelecto, alegando que se trata da natureza, mas para suspeitarmos mais ainda dele, e mortificá-lo para honra dAquele que nos deu uma outra natureza.

Aprendemos três lições da história dessa famosa mulher. O Espírito não nos revela muita coisa mais de sua vida. Será que Ele foi entristecido e deixou de fazer menção dela? Da semente que ela semeou, nada colheu além de desapontamentos. Nenhum benefício resulta de suas maquinações e de seus planos, mas acontece justamente o contrário. Ela perde o seu favorito, Jacó, e nunca mais o vê após o longo exílio a que os próprios planos e maquinações dela acabaram por enviá-lo.

Há ainda isto a ser dito: Jacó teve seu intelecto formado pela mesma antiga influência. Por toda a sua vida ele foi um homem calculista e sem muita afeição. Seu plano, primeiro para obter a primogenitura, e depois a bênção; sua confiança em seu próprio plano, ao invés de confiar na promessa do Senhor, por ocasião do reencontro com Esaú; seu apego a Siquém, e sua permanência ali ao invés de viver uma vida de peregrino pela terra como fizeram seus pais – tudo isso revela a natureza e influência do velho caráter de família.

Quanta necessidade temos de vigiar essa antiga semente que foi semeada no coração – sim, e vigiar a primeira ou a última semente que estamos ajudando a semear no coração de outros! Isto porque os detalhes mais completos dessa história nos advertem ainda mais acerca dessas coisas.

O nascimento de Esaú e Jacó nos é mostrado no final do capitulo 25; e, à medida que crescem e se tornam rapazes, surge a oportunidade de olharmos para dentro do dia a dia da família. Mas, conforme veremos, trata-se de algo verdadeiramente humilhante.

Aquela era uma das famílias de Deus sobre a Terra. Ou melhor, era de longe a família mais eminente, na qual estavam postas as esperanças de toda bênção para toda a Terra, e sobre a qual o Senhor, eminentemente acima de tudo, registrou o Seu Nome.

Mas o que vemos? Isaque, o pai, havia caído na corrente dos desejos humanos; ele amava seu filho Esaú por haver comido o guisado que este preparava! Precisamos parar para considerar Esaú por um momento. Apesar de ser filho, ele era responsável pelo cuidado e proteção da casa – o que está mais do que evidente – coisas que Isaque e Rebeca deveriam ter dado a ele, junto com cuidado e amor paternal; mas para Isaque chegar a ponto de fazer de Esaú seu favorito por haver comido de seu guisado, era algo verdadeiramente triste e ruim. E porventura não vemos, até nisso, alguma ilustração adicional ao nosso assunto? Isaque havia recebido uma educação suave. Nunca havia saído do lado de sua mãe, por ser filho de sua velhice. Mas talvez sua educação o tivesse tomado por demais relaxado, e ele surge diante de nossos olhos como um homem de modos delicados e indulgente para consigo mesmo.

Mas, oh, que triste perda, que doloroso fracasso nos é mostrado aqui em toda esta cena familiar! Será que estamos exagerando pelo fato de um pai estar ajudando a confortar um filho enquanto a mãe ajudava o outro? Sem dúvida podemos encontrar tal coisa aqui, e ainda um terreno fértil para terríveis temores. O amor de Isaque pelo guisado pode ter encorajado Esaú na caçada, do mesmo modo como a habilidade de Rebeca, recebida e trazida da casa de seu irmão em Parã, parece haver formado o intelecto de seu favorito Jacó.

Oh, que tristeza e causa de humilhação encontramos aqui! É isto um lar de fé? É isto uma família temente a Deus? Sim. Estes são filhos da promessa e herdeiros do Seu reino: Isaque, Rebeca e Jacó. Quando vistos em outras situações eles nos deleitam e edificam. Veja Isaque na maior parte do capítulo 26; sua conduta é maravilhosa – toda ela digna de um estrangeiro celestial andando no mundo: ao sofrer, ele não ameaça, mas entrega-se Àquele que julga com justiça. Ele sofre, e recebe o sofrimento com paciência;

e seu altar e sua tenda testemunham de seu caráter santo e desapegado do mundo. Assim também vemos Rebeca no capitulo 24. Por fé ela consente em atravessar o deserto sozinha com um estranho, porque seu coração estava posto no herdeiro das promessas; deixando seu lar e sua parentela, esquecendo-se de seu pai e da casa de seu pai. Mas quando vistos aqui (no capítulo 27), que vergonha enche a cena toda, e quão atônitos e confusos ficamos ao ver o modo como herdeiros da promessa e filhos de Deus se comportam!

Mas será que devemos continuar expondo isso ainda mais? Sinto que devo fazê-lo; pois o coração não é só vil e corrupto, mas também é tão atrevido a ponto de levar sua inconseqüência para dentro do santuário, como nos mostra o final desta história.

A palavra dada a Aarão, muito tempo depois disso, foi: “Não bebereis vinho nem bebida forte, nem to nem teus filhos contigo, quando entrardes na tenda da congregação” (Lv 10:9). Isso porque não era para a natureza ser estimulada a fim de atuar no serviço de Deus; para o cumprimento dos deveres do santuário a natureza não deveria ser estimulada, ou posta em ação, por meio daquilo que a alimenta. A bebida forte podia alegrar e incitar o vigor físico, mas não eram estas as qualificações de um sacerdote.

Mas foi mesmo por uma banalidade assim que Isaque foi desmascarado. “Toma” – disse ele a Esaú – “as tuas armas, a tua aljava e o teu arco, e sai ao campo, e apanha para mim alguma caça. E faze-me um guisado saboroso, como eu gosto, e traze-mo, para que eu coma; para que minha alma te abençoe antes que eu morra” (Gn 27:3-4). Ele estava prestes a executar a última ação religiosa de um sacerdote patriarcal e perde o pede por “vinho” e “bebida forte”, pela comida da mera natureza, para animá-lo e satisfazê-lo para o serviço do templo! Terrível abominação! “Cujo deus é o ventre” (Fp 3:19), é quase o que pode ser dito nessa questão do guisado. Podemos todos estar cientes do quanto existe de natureza poluindo nossas coisas santas; quanto de entusiasmo carnal pode ser erroneamente tomado como a suave e poderosa corrente do Espírito. Podemos estar cientes de coisas assim nos lugares de comunhão, mas isto é para tristeza nossa; confessamos isto como mal e fraqueza, e devemos vigiar contra tais coisas; mas nos prepararmos para tal, misturando, assim, cuidadosamente o “vinho” e “bebida forte”, conscientemente adotando no coração um tal desígnio – certamente é uma triste abominação!

Todos nós conhecemos muito bem a fraude que Rebeca e Jacó praticaram nesta cena. Não é preciso repeti-la. Trata-se de uma história bem conhecida. Mas a santidade do Senhor consome cada partícula de tudo isso. A santidade do Senhor transforma tudo em cinzas. Isaque perde o seu Esaú, Rebeca nunca mais volta a ver Jacó, pois os poucos dias prometidos se transformam em vinte anos, e o suplantador calculista acaba ficando ocupado em meio às labutas, e distante da casa de seu pai por esse longo e sombrio período. Nada resulta de tudo isso, quer olhemos para os planos da carne de um lado ou para o favoritismo carnal do outro: tudo é desapontamento e tudo é repreendido pela santidade do Senhor.

Algo sério, mas uma lição das mais preciosas! Certamente é precioso vermos o Senhor ressentindo-Se assim da impureza até mesmo de Seus mais queridos servos escolhidos.

Mas a nós resta contemplar a graça assumindo seu papel e seu alto e triunfante lugar. Sua santidade fica assim decididamente estabelecida pelo Senhor, pondo de lado todas as vantagens que o pecado havia prometido, e então a graça reina.

No grande mistério da redenção, a graça toma seu lugar triunfante na promessa de que a Semente da mulher esmagará a cabeça da serpente; mas há também a plena execução de todas as determinações da santidade contra o pecado – pois a morte entrou conforme havia sido avisado, e as penalidades caíram sobre o homem, e sobre a mulher, e uma maldição e caiu sobre a serpente. Assim acontece aqui: Isaque perde o que planejava para Esaú; Rebeca tem que despedir Jacó; e o próprio Jacó, apesar de conseguir, à sua maneira, a primogenitura e a bênção, tem que sair do lugar de sua herança e do cenário de todos os gozos que lhe estavam prometidos, e ir embora para o exílio sem um centavo. Porque o único salário do pecado é a morte. Mas aí a graça toma o seu mais elevado lugar de destaque. É aberto caminho para ela ascender, por santidade incandescente, ao seu trono, e ali brilhar, deleitando-se no esplendor de sua própria glória (Gn 28).

E é glorioso. Até mesmo a miséria a que o pecado de Jacó havia reduzido, o objeto de toda essa graça só evidencia ainda mais sua glória. Mesmo quando o servo da casa saíra no passado como um errante (Gn 24), ele ainda tinha seus camelos e ajudantes, e todo o necessário para tomar a jornada através desse mesmo deserto algo honorável e agradável. Mas agora o filho e herdeiro, o próprio noivo prometido, para quem a honra da casa e as alegrias do matrimônio estavam preparadas, tinha que se deitar sozinho, sem amigos, sem cuidados, sem abrigo; as pedras do lugar formavam seu único travesseiro. Mas a graça, que transforma a sombra de morte em manhã, está preparando um descanso glorioso para ele; ele escuta a voz do maravilhoso amor e a ele são mostrados mundos de luz nesse lugar de solidão e trevas. Ele sonha, e vê os altos céus ligados com aquele mesmo lugar escuro e estéril sobre o qual ele estava deitado, e com os pés descalços o povo celestial mantendo uma feliz comunicação; e ele escuta o próprio Senhor do céu, no cimo daquela cena mística, dirigindo-Se a ele em palavras de promessa, e de promessa somente. Ele vê a si próprio, embora tão errante, tão pobre, e tão vil, assim associado com a glória que a tudo penetra, e herdeiro de todasuas misericórdias a consolações presentes, até que toda essa glória estivesse pronta para se manifestar. A santidade da graça ainda o deixa como alguém que vagueia; mas as riquezas da graça lhe falam do consolo presente e da certeza das glórias futuras. E realmente é assim. Todavia isso tudo me levou um pouco além de meu assunto imediato.

Existe, portanto, algo como um caráter de família; e a lembrança disso, e o tratarmos conosco, deve nos tornar vigilantes e zelosos acerca de todos os nossos hábitos e tendências peculiares. E, quando estivermos tratando com outros, deve nos encher de consideração e nos conceder um espírito de intercessão, preparando-nos para reconhecer que existe um caráter de família, ou uma força de antigos hábitos ou de educação recebida, que opera em maior ou menor medida em todos nós.

A lembrança disto pode ser de ajuda em nossos dias. Mas não posso me esquecer de acrescentar que, se por um lado somos propensos a herdar um certo caráter de família, ou os hábitos que já recebemos por nascimento ou caráter, por outro devemos exibir aquele caráter ao qual nosso nascimento e educação na família celestial nos ligou desde então.

Neste sentido, em João 8 o Senhor argumenta que nossa filiação ou nascimento, ou ligações familiares, devem ser evidenciados por nosso caráter ou nossos feitos. “Se fôsseis filhos de Abraão, faríeis as obras de Abraão” (Jo 8:39). Ele disse outras coisas semelhantes. Vemos assim a necessidade de levarmos o caráter de família.

Mas somos exortados também a fazer o mesmo – a procedermos como nosso Pai, por assim dizer. No cultivo de todas as caridades e desapegos, da bondade dada em troco, o Senhor diz, “Sede vós pois perfeitos” (Mt 5:48); e o apóstolo assume o mesmo pensamento ao insistir na necessidade do amor e perdão, “Sede, pois, imitadores de Deus, como filhos amados” (Ef 5:1).

Oh, que possamos estar empenhados no cultivo do caráter de família! Deixar que o velho homem em nós seja rebaixado, e que o novo homem se eleve e assuma seu lugar em nós! Deixar que o caráter, seja ele qual for, que recebemos de nossos vínculos naturais ou dos hábitos de nossa natureza, seja vigiado; e que o caráter de nosso nascimento celestial seja acalentado e expressado para o Seu louvor, para o louvor dAquele que nos fez nascer de novo como vivos para e com Ele, tirados da morte.

Religião de Família (Gn 11)

Esta é uma história que, creio eu, irá proporcionar muita oportunidade de se perscrutar o coração. Peço por graça para poder expô-la de modo sábio e proveitoso.

Sem, um dos filhos de Noé, foi o ramo sagrado. A religião estava mais associada a ele do que a seus irmãos, e dele veio o povo separado. Todavia, após poucas gerações essa família religiosa tornou-se corrompida; pois em menos de trezentos anos, e não sabemos quanto tempo antes, nós os encontramos servindo a outros deuses (Js 24:2). Trata-se de uma história comum, mesmo para nossos dias. Famílias, bem como igrejas, são vistas em uma condição tristemente degenerada e corrompida, apesar de um dia terem sido conhecidas por seu zelo e serviço.

Todavia, o Espírito de Deus, em graça soberana, visita um filho de Terá, oito gerações depois de Sem. O chamado do Deus da glória foi feito a Abrão e o separou daquelas corrupções, e do país, parentela, e da casa de seus pais a fim de moldá-lo como uma nova obra para o Senhor (At 7:2).

Abrão, ao que parece, tornou seu chamado conhecido de sua família, e como é comum acontecer ainda hoje entre nós, essa comunicação teve uma certa influência entre eles.

Daí brota a religião de família. O poder do evangelho é conhecido primeiro por um membro da família, e a partir dele se espalha. E o Senhor queria que fosse assim. Trata-se de um péssimo sintoma, como veremos aqui, quando isso não acontece.

Assim foi aqui. Terá, o pai, se apronta. Naor, um de seus filhos, pelo que podemos presumir da narrativa toda, não foi muito atingido por sua influência, pois ele, sua esposa e filhos, todos permanecem onde estavam. Mas Abrão, sua esposa e Ló, filho do falecido Harã, filho de Terá, saem para a jornada divinamente indicada. E Terá, o pai, aparentemente é quem toma a liderança.

Mas antes que eu vá mais longe com esta narrativa, devo perguntar se tudo aquilo estava certo da parte de Abrão. O chamado havia sido para ele. Sobre ele tinha vindo a energia do Espírito. Certamente que a família pôde ter sido trazida para dentro do raio de alcance daquela energia ou influência: mas mesmo assim, porventura não caberia a Abrão ocupar o lugar que aquela energia lhe havia claramente designado? Acaso não estaria sendo um pouco de concessão à carne e ao sangue, da parte de Abrão, que a Terá fosse concedido tomar a liderança nesse grande movimento sob o Espírito de Deus? Pode ser. E prefiro julgar que assim tenha sido, e que isso tenha a ver com a permanência em Harã e a morte de Terá naquele lugar, e com a investidura de uma segunda energia vinda do Senhor ao chamar Abrão quando estava em Harã (Gn 11:31-12:1).

Tudo isso nos serve de admoestação. A religião de família é algo belo, mas a ordem familiar ou as reivindicações humanas não podem arrogar os direitos que pertencem ao Espírito. É maravilhoso vermos Cornélio, ou qualquer outro em circunstâncias semelhantes, trazendo seus amigos e parentes para dentro daquela influência que estava visitando a sua casa. Mas se a carne e o sangue, ou se as relações humanas, atrapalharem o progresso soberano do Espírito, podemos esperar que haverá uma parada em Harã ou na metade do caminho outra vez, e será necessário um segundo chamado (segundo em certo sentido) para colocar a alma novamente no caminho de Deus.

Podemos observar e discernir estas coisas para nosso proveito e admoestação. Todavia, sob aquela renovada energia do Espírito, Abrão recomeça sua jornada, e Sara, sua esposa, e Ló, seu sobrinho órfão, o acompanham. Esta é ainda uma cena da religião de família. Em Ló vemos alguém que estava na borda daquela influência geral ou de família. Nada lemos de algum chamado distinto dirigido a ele, ou de qualquer sacrifício que tenha oferecido. Não que ele represente um mero professo, ou alguém que se liga ao povo de Deus por interesse. Não, ele era um homem justo, e tinha uma alma vivificada que podia ser afligida pela impiedade do ímpio (2 Pd 2:7-8).

Mas sua entrada na família de fé não expressa nenhuma energia. Foi produzida de um modo familiar, como tenho observado – como mil outros casos que vemos acontecer em nossos dias. E é bom que coisas assim aconteçam. Que alegria é quando a esposa Sara, ou o pai Terá, ou o sobrinho Ló de nossos dias acompanham os Abrãos de hoje. Isto não aconteceria, nós bem sabemos, sem o envio e o ensino do Pai (Jo 6:44-45). E Ló era, com certeza, um eleito, tanto quanto Abrão, mas a energia do chamado de Deus não se manifesta nele como em Abrão – diferenças que não podemos deixar de continuamente observar. Com Abrão tratava-se de algo caracteristicamente pessoal; com Ló tratava-se de algo de caráter familiar. E em conformidade com tudo isso, bem na primeira cena em que Ló é chamado a agir de modo independente já vemos sua fraqueza.

Abrão lhe dá a escolha da terra. E ele escolhe. Ora, não é apenas por ter escolhido o melhor que nossos corações o condenam, mas simplesmente por ter escolhido. Em todos os aspectos era Abrão quem tinha o direito à primeira escolha, como costumamos dizer. Ele era o mais velho, tanto em idade como no grau de parentesco. Ele era o principal em toda aquela ação que os havia levado àquela terra distante, e Ló nada mais era do que um que foi junto. Abrão foi nobre e generoso em ceder seu direito a um parente mais jovem. Mas Ló era insensível a tudo isso, e acaba fazendo a escolha, e então (como não poderia deixar de acontecer com um começo assim), ele escolhe com base em um princípio inteiramente mundano. Ele toma as campinas bem regadas para seu gado e seus rebanhos, embora aquilo o levasse para perto daquela corrupta cidade (Gn 12).

Assim, a primeira prova de Ló se torna um doloroso testemunho contra ele. Demonstra a fraqueza com que a fé ou o reino de Deus haviam se introduzido em sua alma. A maneira de agir de Abrão era bem diferente, pois a voz do Deus da glória tinha sido poderosamente ouvida por ele, arrancando-o do mundo ao qual Ló ainda estava apegado. Tudo isso tem uma mensagem para nossos ouvidos.

Logo fica patente o mundo desalentador que Ló estava escolhendo. As campinas bem regadas cedo se transformam em campo de batalha; e, senão fosse por Abrão, ou pelo Deus de Abrão, Ló teria perdido ali a sua liberdade, bem como todos os seus bens.

Mas é ainda mais triste ter que dizer que aquele primeiro desapontamento não libertou seu coração de suas ímpias amarras. Ele volta a Sodoma pela segunda vez até ser forçado a se mudar, pela mão do próprio Deus. Se quando a campina bem regada se transformou em um campo de matança Ló se recusou a aprender a lição e não saiu de lá, acaba tendo que aprender quando ela se transforma em um monturo fumegante no dia do Senhor.

Que melancólica catástrofe! Um vergonhoso fim para um crente mundano! O quanto isso nos fala! Acontecia ali uma salvação como que por fogo, uma fuga da casa em chamas, uma inglória partida deste mundo! Podemos receber essa admoestação em nossos corações, e vigiar contra a primeira olhada às campinas bem regadas de Sodoma (Gn 14-15).

Disso tudo certamente aprendemos grandes lições, tanto de conforto como de advertência. Nos mostram que a religião de família é algo maravilhoso, e que a verdadeira piedade pode começar dessa maneira, como foi com a casa de Abrão. Mas nos admoestam que cada um envolvido deve tomar muito cuidado em cultivar o poder da piedade de um modo bem pessoal, ou nossa religião irá revelar a fraqueza de uma mera influência geral ou familiar, e não demorará muito até se desvanecer completamente.

Como observei, sob Abrão a religião de família se disseminou, mas o mesmo não aconteceu sob Ló; pois sua esposa continuou levando o pensamento de Sodoma, e se transformou em um farol que até hoje alerta os viajantes desse perigo.

Suas duas filhas se corrompem tornando-se mães de duas descendências corrompidas que são rejeitadas sob expressa proibição de acesso a qualquer parte da casa de Deus (Dt 23:2). E seus genros, quando Ló lhes falou do juízo, desrespeitosamente o trataram como um louco ou zombador.

Aqui certamente encontramos um assunto sério para nossas almas se ocuparem! Se nossa religião ou profissão de Cristo brotou sob a influência de uma atmosfera familiar, avisamos aqui que se deve vigiar e cultivar um poder de piedade profundo e pessoal, em um santo temor e suspeita da fraqueza da raiz de uma tal planta.

E mais, se nossa profissão de Cristo não espalhou, em maior ou menor medida, como aconteceu com Abrão, uma influência na família, temos um grande motivo para nos humilhar e temer que isso é porque nós, pessoalmente, não exibimos a fé em todo o seu poder vitorioso e separador.

Deste modo muitas lições de grande e sagrada importância. no assunto da religião de família, nos são transmitidas por esta breve história. Nos ensinam, como já mencionei, que devemos ser o meio de disseminação; mas, se tivermos sido nós que fomos sujeitos a essa influência, devemos vigiar de um modo especial, como aqueles que têm um bom motivo para desconfiar de sua própria fraqueza. Pois igualmente é falado pelo mesmo Espírito, perfeito e que não erra, “Prove cada um a sua própria obra, e terá glória só em si mesmo, e não noutro” (Gl 6:4). E mais uma vez, “E vós, pais, não provoqueis à ira a vossos filhos, mas criai-os na doutrina e admoestação do Senhor” (Ef 6:4). A religião de família é, deste modo, honrada pelo Senhor, mas a consistência e o poder pessoal dela são também levados em conta. Os pais devem levar os filhos a conhecer a verdade (Is 38:19), mas cada pessoa deve nascer de novo ou não verá o reino de Deus.

É maravilhoso vermos a “fé não fingida” (1 Tm 1:5; 2 Tm 1:5) habitando em uma geração após outra em uma mesma família, como foi com a avó Lóide, a mãe Eunice, e o filho Timóteo. Mas é maravilhoso vermos também na terceira geração desta família as lágrimas e afeições que revelam a plena convicção de que a religião deles não era meramente uma questão de educação ou imitação, ou a simples influência familiar, mas a investidura do precioso poder de um reino que o próprio Deus estabeleceu na alma.

“Os quais temos ouvido e sabido, e nossos pais no-los têm contado. Não os encobriremos aos seus filhos, mostrando à geração futura os louvores do Senhor, assim como a Sua força e as maravilhas que fez” (Sl 78:3-4).

 

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J.G.Bellet

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