ABORTO

No dia 9 de agosto de 1974, na sala oriental da Casa Branca, o presidente dos Estados Unidos, Gerald Ford, dirigiu-se à nação. Seu discurso é lembrado pela sua frase inicial, uma frase que, na opinião de muitos, foi o seu pronunciamento oficial mais memorável: “Nosso longo pesadelo nacional acabou”. O presidente Ford referia-se ao caso Watergate, a questão política e legal que resultou na primeira renúncia na história presidencial daquele país. Apesar da sinceridade das palavras do sr. Ford, ele provavelmente não sabia que o grande pesadelo nacional dos americanos havia começado poucos meses antes.
 
No século 19, os estados americanos seguiam-se um ao outro na promulgação de leis que protegiam as crianças antes do seu nascimento. Até 1966, o aborto era ilegal em todos os estados, a não ser que fosse, do ponto de vista médico, absolutamente necessário. No século 20, o aborto começou a ser mais comum nos países europeus. No final dos anos 60 e começo dos anos 70, Nova York tornou-se o primeiro estado americano a liberalizar suas leis quanto ao aborto. Finalmente, em 22 de janeiro de 1973, a Suprema Corte dos Estados Unidos, no infame caso Wade contra Roe, permitiu o aborto, praticamente indiscriminado, nos primeiros seis meses de gestação, e por motivos médicos nos últimos três meses. O pesadelo começara, e ainda continua.
 
Cada dia, nos Estados Unidos, mais de quatro mil abortos são realizados. Por ano, mais de 1.5 milhão de gestações são interrompidas. O aborto é o segundo procedimento cirúrgico mais comum naquele país. Há um aborto para cada dois partos. Tragicamente, 29% são casos reincidentes.
 
Cristãos sentem uma repulsa interior só ao pensar em tirar a vida de uma criança que ainda não nasceu. Este instinto espiritual é extremamente valioso, especialmente nesses dias quando enfrentamos tantas questões que não tem, aparentemente, uma resposta pronta e rápida das Escrituras. Este instinto, porém, precisa ser apoiado em fatos bíblicos, para que não se degenere em simples retórica intransigente. Para aqueles que perseverarem pacientemente na leitura deste capítulo, a base bíblica será examinada.
 
Quando um ancião querido soube que eu tentaria escrever sobre esta questão, a sua resposta foi perspicaz. Ele falou sobre a dificuldade que o assunto apresenta: “Você não vai encontrar esta palavra em nenhuma concordância bíblica!” E é verdade. A razão disto é, possivelmente, tão óbvia que a perdemos de vista, e deixamos de apreciar um dos maiores argumentos que as Escrituras nos fornecem. A grande lamentação do Velho Testamento era por causa de esterilidade, não de gravidez. Filhos eram considerados uma herança do Senhor (Sal. 127:3); o fruto do ventre era Sua recompensa e sinal de bênção. Nenhum dos santos do Velho Testamento contemplou o aborto. Raquel ameaçou tirar a sua própria vida se não tivesse filhos (Gên. 30:1). “Sede fecundos e multiplicai-vos” era o desejo de Deus do Éden em diante (Gên. 1:28).
 
Antes de examinar algumas das Escrituras que falam mais diretamente sobre este assunto, deveríamos examinar, cuidadosamente, a filosofia que gerou e legalizou este método moderno de controle da natalidade.
 
Dezoito anos atrás, junto com mais de cem colegas de classe, eu recitei o juramento Hipocrático. Aquele juramento continha uma promessa de nunca interferir com uma gravidez. Aqueles que eram culpados disso eram desprezados pelos seus colegas de profissão, e tratados com rigor, tanto por sociedades legais quanto médicas. Tão terrível era este crime, poucos anos atrás, que aqueles que o cometiam eram descritos da forma mais humilhante possível pelos seus colegas médicos. O que é que causou uma virada de 360˚ na opinião da sociedade? Como é que algo tão odiado tornou-se tão aceito, em apenas quinze anos?
 
Nenhuma razão isolada poderia responder a esta pergunta tão complexa. Há, porém, duas filosofias óbvias que controlam o pensamento dos homens desde o final dos anos 60, e que influenciam, em grande parte, a opinião atual das massas. Reconheço que talvez não sejam tão importantes aos principais pensadores, atualmente, mas seus efeitos ainda controlam a mente das multidões, mesmo depois de tanto tempo.
 
A primeira destas filosofias foi aquela que gerou a geração “Eu” — a justificativa de cuidar de si mesmo, do Número Um. A lei da selva voltou à civilização, e era cada um por si. O resultado desta linha de raciocínio foi que cada um tinha o “direito” de fazer o que fosse melhor para si.
 
Ligado a isto, houve a tentativa de separar as consequências das ações; acabar de uma vez com a necessidade de preocupar-se que cada ato traz resultados inevitáveis. Ciência, tecnologia, dinheiro, ou na pior das hipóteses, os seus contatos influentes poderiam cuidar dos resultados. A lei inviolável de Deus, de que colhemos aquilo que semeamos, foi desprezada.
 
Estas duas linhas de pensamento não são, de forma alguma, novas; elas tiveram seu início no Éden. O presente século, porém, aprimorou estas ideias, tornando-as aceitáveis, sem constrangimento, aos homens.
 
A união destas duas linhas de pensamento levou a uma nova maneira de encarar a gravidez. Agora, não é mais o simples caso de aceitar uma gravidez. Cada um tem o “direito” de decidir se é bom, naquele momento, ter um filho. Se a criança for inconveniente, ou se o seu nascimento for interferir com uma carreira, é perfeitamente justificável “terminar” uma gravidez. Começou, assim, a retórica da criança indesejada, do direito de controlar o meu corpo, e uma multidão de outros eufemismos criados para encobrir a atitude clara de egoísmo e irresponsabilidade.
 
Olharemos para a futilidade destas coisas mais adiante. Por enquanto, permita-me salientar o fato que, se não houvesse nenhuma razão bíblica para condenar o aborto (e há várias), as atitudes antibíblicas que promoveram a aceitação do aborto deveriam nos alertar de que é obra de corações depravados e de egoísmo.
 
Mas e as Escrituras? Elas nos oferecem alguma luz sobre este assunto? Qualquer artigo que mencione aborto deve confrontar as palavras tão citadas de Êxodo 21:22-25. Muitos usam estas palavras numa tentativa de mostrar que a criança, ainda não nascida, é inferior a um ser humano. Olhemos para o versículo no seu contexto:
 
“Se alguns homens pelejarem, e um ferir uma mulher grávida, e for causa de que aborte, porém não havendo outro dano, certamente será multado, conforme o que lhe impuser o marido da mulher… Mas se houver morte, então darás vida por vida.”
 
Há várias maneiras de entender estes versículos. Os eruditos diferem quanto ao significado exato, como veremos; não diferem, contudo, nas lições morais aqui contidas. Alguns, que seguem a tradução de Spurrel, entendem a expressão “for causa de que aborte” como referindo-se a um nascimento prematuro que sobrevive, “não havendo outro dano”. Assim não haveria pena de morte, pois nenhuma vida foi perdida. Outros eruditos, igualmente competentes na língua hebraica, entendem que significa que ela perde a criança, mas ela permanece com vida. Alguns aproveitam-se disso para criar uma diferença de valor entre a vida da criança no ventre, e a vida da mãe. Argumentam, então, que como a morte da criança era paga com dinheiro, e a morte da mãe com outra vida, que a criança tem um “valor” menor do que a mãe, e é portanto menos “humana” que a mãe. O contexto do capítulo destrói este raciocínio. O assunto do capítulo todo é responsabilidade e intenção, não valores relativos da vidas. No v. 13, se um homem matasse outro por acidente, ele não deveria ser morto; poderia escapar para a cidade de refúgio. No v. 28, se um boi escorneasse um homem ou mulher, matando-os, o dono não morreria, mas o boi seria morto. Será que Deus estava dizendo que o boi e o homem que ele matou tinham o mesmo valor? Mas se o dono soubesse que o “boi dantes era escorneador” e não o prendeu, então o boi e o dono deveriam ser mortos para compensar pelo crime. No v. 32, se o boi escorneasse um escravo, o seu dono pagaria 30 siclos de prata, e o boi seria apedrejado. Em todos estes exemplos, não há qualquer intenção da parte de Deus de colocar valores relativos nas vidas de escravos, homens, mulheres ou crianças prematuras. É uma questão de intenção, premeditação e motivo.
 
Venha agora ao Salmo 139. Antes de pular diretamente para os versículos que nos interessam diretamente, vamos dar uma olhada no Salmo todo. Seu propósito é detalhar a grandeza de Deus. Seus atributos são descritos para nossa admiração, levando-nos a adorá-lO. Os primeiros seis versículos falam da Sua onisciência; os próximos seis falam da Sua onipresença; e os próximos quatro, como esperado, falam da Sua onipotência. É impressionante, porém, que quando o Espírito de Deus quer nos dar um exemplo do poder de Deus, Ele não fala da majestade e grandeza da Criação. Pelo contrário, Ele nos leva a contemplar um pequeno feto em desenvolvimento — a maravilha da criação de uma vida.
 
O que podemos aprender do Salmo 139:13-16? Uma verdade óbvia se destaca mesmo numa leitura superficial do Salmo: a personalidade se estabelece no útero. O salmista se refere ao interesse de Deus por sua pessoa, seus ossos, seu corpo ainda informe (v. 16). Deus o considerou como pessoa desde aquele tempo. Havia ali identidade; havia personalidade, com todo o seu valor, ali no útero. Um dos grandes argumentos do movimento que prega a liberdade de escolha é que toda criança deveria ser uma criança “desejada”. Em outras palavras, se você não quer este bebê, não gere-o. Pense nisso por um momento. Isto faz o valor de um ser humano ser dependente do desejo de outro. O embrião só tem valor se eu decidir que ele deve viver. Este argumento, na realidade, reduz o bebê a um valor não apenas sub-humano, mas desumano. Tradicionalmente, queremos coisas e amamos pessoas. Mas agora somos ensinados que a mãe deve decidir se ela quer que o bebê nasça; ela pode decidir se ele tem valor ou não. Fica evidente que houve uma grande mudança na atitude da sociedade para com todos aqueles que são indesejados, imperfeitos ou inconvenientes. É apenas uma questão de tempo até que o valor de todo ser vivente seja determinado por outro.
 
O Salmo que estamos considerando deixa claro que, para Deus, a substância ainda informe, o embrião nos primeiros estágios de desenvolvimento, possui identidade e personalidade.
 
Às vezes, as decepções que encontramos ao examinar as Escrituras são mais proveitosas do que uma busca frutífera. Eu examinei as palavras que Lucas, o médico, usa na sua narrativa do Evangelho, certo de que, nos primeiros capítulos, ele usaria palavras diferentes para descrever as crianças nos ventres de Maria e Isabel. Para minha surpresa, ele usa uma única palavra, brephos, para descrever o feto, o bebê, e até a criança pequena. Sem saber bem o que fazer com esta informação, já que não era o que eu tinha pensado (eu imaginei que Lucas usaria uma palavra especial, demonstrando que o feto é uma pessoa), eu a deixei de lado. Mas o fato óbvio é tão destacado que precisa ser dito. Lucas usou a mesma palavra para todos estes estágios da vida, porque todos eram “brephos”. Não havia nenhuma distinção na quantidade de humanidade que cada um possuía. Dr. Lucas, o escritor sábio na medicina, não fez nenhuma distinção, ao escolher suas palavras, entre a criança antes ou depois do nascimento.
 
Na concepção, uma unidade genética completa é formada. Nada será acrescentado para tornar o embrião mais humano ou uma pessoa. Serão acrescentados tempo e tamanho, mas não a essência da vida.
 
O Salmo 139 também retrata o interesse de Deus no desenvolvimento pré-natal de um embrião. Alguns podem achar que é apenas linguagem poética, hipérboles que jorram da pena deste escritor de livros poéticos. Devo lembrar os leitores, porém, que o Senhor Jesus nos mostrou que o Pai tem um interesse na morte de cada pardal. Quão mais apropriado, então, que Ele tenha um interesse no nascimento de cada bebê. No Salmo 139:16, o escritor mostra o interesse de Deus no desenvolvimento do feto, desde a concepção até ao nascimento. Nos vs. 17-18, este interesse estende-se até a morte e o além. Lembre-se que o salmista está, em primeiro lugar, celebrando a grandeza e glória de Deus; este não é um salmo poético sobre a beleza da vida. Ele está nos falando, em primeiro lugar, de Deus.
 
Se Deus tem tamanho interesse no feto em desenvolvimento, como é trágico que os simpatizantes e defensores do aborto veem-no simplesmente como “produtos da concepção”, uma “não-pessoa”, e outros termos semelhantes. O interesse próprio substituiu e suplantou o interesse de Deus no bebê. Somos informados que cada mulher tem o direito de controlar o que acontece com o seu próprio corpo. Isto não é verdade nem mesmo em outros aspectos da vida. Há muitas leis que regulam o que podemos fazer com os nossos corpos. Mas deixando isto de lado por ora, considere o seguinte. Uma criança antes do nascimento é uma pessoa com um corpo. A criança tem, igualmente, o direito de controlar o seu corpo ou, pelo menos, ter seus direitos respeitados. O único meio de escapar desta situação é atribuir, à criança, algo menos do que personalidade. É isto que os defensores do aborto fazem.
 
Longe de ser uma manifestação de controle, o aborto é, frequentemente, uma ação tomada por um corpo que esteve fora de controle. A escolha está na atividade que levou à gravidez. Depois disto, consequências devem ser esperadas e aceitas.
 
A criança ainda não nascida, além de possuir uma identidade e ser o objeto do interesse de Deus, também demonstra a inteligência de Deus. As expressões dos vs. 14-15 mostram isto: “de um modo assombroso, e tão maravilhoso fui feito”. O desenvolvimento do corpo humano é uma das obras de arte de Deus.
 
Mas há diversas outras questões que precisam ser encaradas num estudo desta natureza. Uma questão frequentemente levantada, e que a Suprema Corte, aparentemente, recusou-se a responder, é: “Quando começa a vida? Quando é que a alma entra no corpo?”
 
A maioria das pessoas surpreende-se ao saber quão cedo começa o desenvolvimento físico do feto. O coração começa a funcionar 14 a 18 dias depois da concepção; no final do primeiro mês, todos os órgãos já começaram a ser formados; os braços e as pernas movimentam-se a partir da sexta semana; pode-se detectar atividade de ondas cerebrais com 43 dias. Hoje está incluído, na definição de morte cerebral, a ausência de ondas cerebrais. Sua presença já pode ser detectada num feto com apenas um mês e meio de vida.
 
Há muito tempo os teólogos e pais da Igreja debatem sobre a questão do momento em que a alma incorpora-se no corpo. Algumas das primeiras ideias incluíam o conceito de que era depois de quarenta dias para os homens, e depois de oitenta para as mulheres, uma teoria muito estranha!
 
Depois de analisar todos os argumentos, há uma pergunta básica que permanece: se não acontece na concepção, então quando poderia ser? Será que as Escrituras podem nos ajudar nesta questão?
 
Considere o caso singular da encarnação de Cristo. Todo cristão concordaria que era Cristo no ventre de Maria; Sua alma já estava ali. Alguns poderiam argumentar que este é um caso singular. É verdade. Mas e João Batista? Será que a criança saltando no ventre de Isabel foi mera coincidência? Se alguém acha isto imaginação, saiba que há muitas evidências de pensamento e atividade intrauterina.
 
Perceba, também, a expressão no Salmo 51:5: “Em pecado me concebeu a minha mãe”. Se a natureza caída de Adão estava presente na concepção, como poderíamos dizer que a alma não estava? Não há nada na Bíblia para sugerir que Deus dá uma alma a cada um, pouco antes do nascimento. Apenas uma vez na Bíblia encontramos Deus dando uma alma a alguém: “Deus … soprou em suas narinas o fôlego de vida; e o homem foi feito alma vivente” (Gên. 2:7). A opinião do autor é que a alma é transmitida na concepção.
 
Outro aspecto que precisa ser enfrentado, apesar de ser muito difícil, é a gravidez resultante de um crime, totalmente contra a vontade da vítima. Devemos afirmar, primeiro, que a exceção nunca governará a prática geral. Este tipo de aborto representa, hoje, uma fração de um por cento dos abortos praticados nos Estados Unidos, mas devemos encarar a questão francamente. Quando um ato violento gera uma gravidez, há uma vítima; quando a gravidez é terminada pelo aborto, há agora duas vítimas. Acabar com o resultado do crime não diminui a ofensa ou o seu mal; nem começa a reverter o trauma sofrido pela mulher. Apenas acrescenta outro trauma à sua vida.
 
Não há soluções fáceis para o pecado. Cada pecado, cada ato ímpio, somente traz tristeza. As opções que o pecado apresentam serão sempre uma escolha entre o menor dos males. O aborto, por ser um grande mal, nunca poderá solucionar o problema com justiça.
 
O texto acima é a íntegra do cap. 9 do livro “Casamento e Família”, escrito pelo médico A. J. Higgins e publicado pela Editora Sã Doutrina em 1997. O livro tem 146 págs. 
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