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INTRODUÇÃO
O objetivo destes estudos é apresentar algumas informações sobre as igrejas e sobre alguns irmãos de destaque que, ao longo dos séculos, procuraram seguir fielmente o padrão do Novo Testamento. O título "A Igreja Peregrina" é inspirado no livro escrito em inglês por Edmund Hamer Broadbent (1861–1945), publicado em 1931, fruto de muitos anos de pesquisa. Trata-se de uma história de igrejas e irmãos que, através dos séculos, procuraram seguir o padrão neotestamentário para a igreja. (...)
Observação: O livro “A Igreja Peregrina” já está traduzido para português e vendido na Amazon.
I — COMO ERAM AS IGREJAS APOSTÓLICAS?
A seguir, apresentamos um resumo de algumas das principais doutrinas e práticas que caracterizavam as igrejas do período apostólico:
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Reuniam-se exclusivamente em Nome de Cristo.
Não havia outro nome ou título exaltado entre eles senão o do Senhor Jesus Cristo, conforme ensinado em Mateus 18:20 e Filipenses 2:9-11. -
Possuíam autonomia administrativa, embora mantivessem entre si laços calorosos de amor fraternal.
Cada igreja era localmente autônoma, como se vê em Atos dos Apóstolos 14:23 e Tito 1:5, mas havia comunhão e cuidado mútuo entre elas, como em 2 Coríntios 8. -
Eram governadas por anciãos (presbíteros), também chamados bispos (superintendentes), sempre em pluralidade.
Essa liderança plural é claramente observada em Filipenses 1:1, Atos 20:17,28 e 1 Pedro 5:1-3. -
Eram ensinadas por mestres levantados pelo Espírito Santo, que haviam recebido dons da parte de Deus.
Esses mestres, tanto locais quanto itinerantes, ministravam a Palavra conforme a direção do Espírito, como descrito em Efésios 4:11 e 1 Coríntios 12:28-29. -
Celebravam a Ceia do Senhor todos os primeiros dias da semana.
Esta prática era uma refeição simples com pão e vinho, simbolizando o corpo e o sangue do Senhor Jesus Cristo, em obediência a 1 Coríntios 11:23-26 e Atos 20:7. O mesmo dia era usado para levantar ofertas entre os crentes (somente os crentes), como vemos em 1 Coríntios 16:2. -
Batizavam apenas crentes verdadeiros.
Crianças e grupos sem compreensão do evangelho não eram batizados, conforme o padrão de Atos 8:36-38, onde o batismo está ligado à fé pessoal. -
Pregavam o evangelho puro da justificação pela fé, baseado unicamente na morte expiatória do Senhor Jesus.
A salvação não era por obras, mas pela graça de Deus mediante a fé, como claramente ensinado em Romanos 5:1, Efésios 2:8-9 e Gálatas 2:16.
II — O DECLÍNIO E ABANDONO DO PADRÃO NEOTESTAMENTÁRIO
Esse desvio ocorreu muito cedo. Contudo, não devemos nos surpreender, pois o próprio Novo Testamento já apontava para a possibilidade e realidade de tal afastamento, como previsto em Atos 20:29-30, 1 Timóteo 4:1 e 2 Timóteo 4:3-4.
1. Distinção entre "clero" e "leigos"
É interessante observar que, nas cartas de Clemente aos coríntios (c. 96 d.C.) e no Didaquê (documento do início do século II), ainda se falava apenas de bispos e diáconos no plural, como em Filipenses 1:1. Entretanto, já havia uma tendência antibíblica de separar os bispos (ou anciãos) do restante dos crentes. Os bispos passaram a ser chamados de "clérigos" (os que receberam ordens sagradas), enquanto os demais eram chamados de "leigos" (povo). Essa separação artificial permanece até hoje em muitas instituições religiosas, contrariando o ensino do sacerdócio universal dos crentes, como em 1 Pedro 2:9.
2. Separação entre "o bispo" e os "presbíteros"
Essa distinção, que dava preeminência a um único "bispo" sobre os demais presbíteros, é notável nas cartas de Inácio de Antioquia, um conhecido do apóstolo João. Inácio foi condenado à morte pelo imperador Trajano em 110 d.C. e, durante sua viagem a Roma, escreveu cartas às igrejas, nas quais exaltava a figura do bispo como autoridade suprema da igreja. Um exemplo claro é sua carta à igreja de Filadélfia, onde afirma:
"Tende cuidado, portanto, em observar a eucaristia... há um altar, como há um só bispo, juntamente com os presbíteros e diáconos."
Apesar de Inácio ser um irmão fiel e ter demonstrado coragem diante da morte, este ensino refletia uma mudança perigosa. Mostra que até mesmo irmãos sinceros podem, por zelo mal orientado, ensinar doutrinas fora do padrão bíblico.
3. Organização das igrejas além do nível local
A partir do século III, bispos de cidades maiores passaram a reivindicar autoridade sobre os bispos de cidades menores. Com o tempo, o bispo de Roma ganhou destaque por estar na capital do Império. Isso preparou o caminho para o surgimento do papado. Tal centralização contradiz o padrão bíblico, que ensina que o Senhor Jesus Cristo é quem anda no meio dos candeeiros de ouro (igrejas locais), conforme Apocalipse 2:1, e que cada igreja deve ser autônoma e responsável diante de Deus.
Intervenções externas nos assuntos internos de uma igreja local — mesmo com boas intenções — quebram esse princípio e causam prejuízos espirituais, pois ferem a autoridade do Senhor sobre cada assembleia.
4. Outros desvios da verdade
a) Culto aos mártires e criação dos "santos"
Desde o século II, mártires começaram a ser reverenciados, e no decorrer dos séculos seguintes foram "canonizados", dando origem à prática antibíblica da invocação dos santos, sem respaldo nas Escrituras (cf. 1 Timóteo 2:5).
b) Batismo de bebês
Introduzido entre os séculos II e III, tornou-se uma prática amplamente aceita nos séculos IV e V. Este batismo não encontra apoio bíblico, pois o Novo Testamento liga o batismo à fé consciente e pessoal (Atos 2:41, Atos 8:12).
c) Distorção do evangelho
Com o tempo, os filhos dos crentes passaram a ser considerados membros da igreja automaticamente, sem novo nascimento. Assim, a salvação pelas obras ganhou espaço — o que Paulo condenou veementemente em Romanos 3:28 e Gálatas 3:10-11. A justificação pela fé foi substituída por sacramentos e méritos humanos.
5. O maior desastre — a fusão da Igreja com o Estado
Essa fusão aconteceu como resultado da suposta conversão do imperador Constantino, o Grande (273–334 d.C.).
Na noite anterior a uma batalha decisiva na Ponte Mílvia (27 de outubro de 312 d.C.), quando Constantino derrotou Maxêncio e se tornou imperador com poderes absolutos, ele afirmou ter visto uma cruz no céu com a inscrição: "Com este sinal vencerás". Ele venceu a batalha e tornou-se um cristão nominal. Essa "conversão" parece ter sido um ato de astúcia política, considerando o grande número de cristãos existentes e a influência que exerciam.
Gene Edwards afirmou que "Constantino deve ser considerado o primeiro cristão medieval — 90% cristão de nome e 90% pagão em pensamento". Sendo imperador e detendo poder absoluto, era natural que desejasse também comandar a Igreja.
Como resultado, o erro penetrou na Igreja como uma enxurrada. O Dr. Arthur Rendle Short escreveu:
"Quando o poder do paganismo foi finalmente derrubado e a perseguição deu lugar à prosperidade, os males vieram como numa torrente.
A igreja exterior e visível fez toda sorte de concessões para cativar o povo. Passou a adotar festas pagãs e deuses pagãos, dando-lhes nomes cristãos. A estátua de Pedro em Roma originalmente era de Júpiter! Uma Vênus ou uma Minerva transformaram-se facilmente na Virgem Maria.
O que faltava em realidade espiritual no culto tentava-se suprir com música, cerimonialismo e ostentação.
Não precisamos continuar detalhando a miserável história de como uma sucessão de papas — por vezes assassinos, adúlteros e amantes do dinheiro — reivindicou a infalibilidade papal, tirou a Bíblia das mãos do povo e fez da conformidade a uma "igreja" que adorava imagens a suprema prova da salvação de uma pessoa".
6. O ensino de Agostinho
Agostinho (354–430 d.C.), bispo de Hipona, no Norte da África, foi um cristão verdadeiramente convertido e, sem dúvida, um gigante espiritual em muitos aspectos. Contudo, infelizmente, também deixou ensinamentos errôneos. Entre outras coisas, insistia com firmeza que não há salvação fora da Igreja Católica Romana.
Outro de seus ensinos, que veio a causar o derramamento de rios de sangue de membros da verdadeira igreja, foi o suposto direito do poder civil de exigir a aceitação obrigatória do ensino da Igreja, punindo até com a morte os que se recusassem a aceitar. Ele fundamentava esse ensino perverso na parábola da grande ceia, em Lucas 14:15–24, onde o mestre da casa, após receber muitas recusas ao seu convite, e mesmo depois de ter acolhido muitos pobres e enfermos, ordenou ao servo: "Sai pelos caminhos e valados, e força-os a entrar".
Isso demonstra claramente o grande perigo de basear qualquer ensino em versículos fora de seu contexto. Por ter feito isso, Agostinho, que por sua estatura moral gozava da confiança de muitos, conduziu esses, apoiados por tal ensino, a praticarem o mal contra o povo do Senhor.
III — TRÊS CORRENTES NA HISTÓRIA DA IGREJA
1. Catolicismo Romano
Em seus diversos ramos: Romano, Ortodoxo, etc., desde 312 d.C. até os dias atuais. Entre os representantes mais conhecidos estão Agostinho, Tomás de Aquino, Inácio de Loyola, Savonarola e muitos papas.
Damos graças a Deus porque alguns, mesmo no meio de tanto erro, realmente amaram o Senhor Jesus e confiaram somente nEle — e não nos méritos dos santos, de Maria ou nos seus próprios méritos — para a salvação.
2. Protestantismo
Em seus muitos ramos, iniciado na Reforma do século XVI e que persiste até hoje. Entre esses ramos destacam-se nomes como Martinho Lutero, João Calvino, Ulrico Zwinglio, João Knox, Jonathan Edwards, John e Charles Wesley, George Whitefield, William Carey, Charles Finney, Charles Haddon Spurgeon, Martyn Lloyd-Jones, Billy Graham e muitos outros.
Quantos irmãos bons e fiéis! Mas, infelizmente, muitos deles estavam ligados a sistemas que não possuem nenhum apoio da Palavra de Deus.
3. Cristãos não denominacionais
Referimo-nos a igrejas, irmãos e irmãs que, desde os dias dos apóstolos até os dias atuais, têm procurado permanecer fora dos sistemas humanos e servir unicamente ao Senhor Jesus, reunindo-se em Seu Nome e buscando obedecer às instruções do Novo Testamento quanto à igreja local.
Esses têm sido rotulados com muitos nomes por seus contemporâneos: Paulícios, Bogomilos, Valdenses, Albigenses, Lollardos, Hussitas, Anabatistas, Irmãos de Plymouth, Darbistas e outros.
Essas igrejas existiram desde o início, pois sempre houve comunidades cristãs que se recusaram a unir-se ao sistema católico e, ao longo dos séculos, em diferentes lugares, existiram e ainda existem igrejas semelhantes, orientadas exclusivamente pela Palavra de Deus.
O livro de Apocalipse mostra que, ao longo da história da Igreja, haveria períodos de declínio espiritual e momentos em que o Senhor removeria o candeeiro de algum lugar. Mas uma coisa é certa: até que Cristo venha buscar os Seus, sempre haverá irmãos e irmãs fiéis à Sua Palavra!
IV — UM RESUMO DOS FATORES EM COMUM ENTRE AS IGREJAS QUE PERMANECERAM FIÉIS AO PADRÃO DO NOVO TESTAMENTO
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Dedicavam grande importância às Escrituras.
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Eram profundamente espirituais.
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Demonstravam piedade em seu modo de viver.
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Permaneciam discretas diante do mundo.
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Sofriam intensa oposição. Frequentemente reuniam-se em casas por causa das perseguições.
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Eram caracterizadas por grande simplicidade. Geralmente, cada igreja era autônoma, embora mantivessem plena comunhão umas com as outras, reunindo-se frequentemente para estudos bíblicos e outras atividades.
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Não adotavam nenhum nome além dos bíblicos: "irmão", "cristão" etc.
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A maioria não se submetia ao sistema clerical.
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Experimentavam bênçãos de Deus por uma ou duas gerações, embora alguns grupos (como os Paulícios e os Valdenses) tenham perdurado por séculos.
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Eram ignoradas pelos historiadores da Igreja.
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Muitas vezes foram perseguidas, e seus membros martirizados (com exceção dos chamados "Irmãos").
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Influenciavam-se mutuamente.
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Especialmente no período anterior a 1500, é difícil encontrar documentos confiáveis, tanto por causa da perseguição quanto pela falsificação dos relatos pelas autoridades eclesiásticas.
V – OS PRISCILIANISTAS (350–386 d.C.)
No século IV, surgiu um reformador entre as igrejas romanas, cuja influência se espalhou por diversas regiões da Espanha, Lusitânia (Portugal) e sul da França, conduzindo muitos de volta à Palavra de Deus.
Prisciliano era um espanhol abastado e influente na sociedade. Procurou a verdadeira alegria nas religiões pagãs, na filosofia e até em grupos heréticos, mas somente a encontrou quando, por fim, converteu-se a Cristo. Foi batizado e passou a viver uma nova vida de devoção a Deus e separação do mundo.
Tornou-se um estudioso entusiasmado das Escrituras e, mesmo sem ser do clero, começou a pregar e ensinar.
Logo os frutos de seu trabalho começaram a aparecer: em muitos lugares promoviam-se reuniões para proclamar a Palavra e torná-la viva entre o povo. A princípio, a igreja oficial o apoiou, e ele chegou a ser eleito bispo de Ávila. Contudo, seu fiel testemunho despertou a ira do clero mundano, liderado por Hidácio, bispo metropolitano da Lusitânia (Portugal).
Este conseguiu convocar um sínodo em Cesaraugusta (atual Saragoça), no ano 380, onde Prisciliano foi falsamente acusado de seguir heresias como o gnosticismo e o maniqueísmo — esta última ensinava a existência de dois deuses opostos: um do bem e outro do mal.
No entanto, o plano de Hidácio falhou e Prisciliano continuou seu ministério.
Posteriormente, o imperador Máximo, visando apoio político do clero espanhol, autorizou outro sínodo, em Treves (Trier), no ano 385. Prisciliano e outros seis irmãos foram levados diante dos bispos. Influenciado por um bispo corrupto chamado Ítaco, o tribunal aceitou acusações forjadas de feitiçaria e imoralidade. Assim, Prisciliano e alguns companheiros foram condenados e executados.
Também foi martirizada uma senhora nobre, Eucrácia, viúva de um poeta e orador famoso. Estes foram os primeiros cristãos executados por outros que também se diziam cristãos, abrindo um lamentável precedente que se repetiria muitas vezes na história.
Dois bispos respeitáveis — Martinho de Tours e Ambrósio de Milão — protestaram veementemente contra esse julgamento e, mais tarde, conseguiram a remoção de Ítaco do episcopado.
Ainda assim, a decisão do Sínodo de Treves foi confirmada por outro sínodo em Braga, 176 anos depois. A história "oficial" perpetuou a falsa ideia de que Prisciliano e seus seguidores eram hereges e imorais.
Essa narrativa poderia ter prevalecido, se não fosse por uma descoberta surpreendente. Prisciliano havia escrito muito, e acreditava-se que tudo estava perdido até que, em 1886, o pesquisador George Schepss encontrou na Universidade de Würzburg um manuscrito com 11 panfletos de Prisciliano.
Neles, ele:
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Cita frequentemente as Escrituras para fundamentar seus ensinos;
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Defende reuniões de estudo bíblico com participação de todos;
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Ensina que a redenção não é um ritual mágico realizado pela Igreja, mas uma obra de Deus;
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Afirma que o Evangelho deve ser crido individualmente;
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Rejeita a ideia de que o clero possui poderes espirituais especiais, destacando que todos os crentes possuem o Espírito;
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Rejeita expressamente o gnosticismo e o maniqueísmo, desmentindo a versão oficial.
Se tivessem tido mais tempo, esses irmãos certamente teriam abandonado completamente o sistema religioso ao qual ainda estavam ligados, e que os condenou por serem fiéis a Cristo.
VI – OS PAULÍCIOS (50–1473 d.C.)
Retornando às igrejas que nunca aderiram ao sistema romano, destacam-se as igrejas da Ásia Menor (atual Turquia e parte da antiga União Soviética), que permaneceram firmes nas verdades do início. Embora acusadas de maniqueísmo, seus próprios escritos não demonstram qualquer ligação com essa heresia.
Esses irmãos rejeitavam nomes sectários, chamando-se simplesmente de "irmãos" ou "cristãos", contentando-se em pertencer à "santa, universal e apostólica igreja do nosso Senhor Jesus Cristo". Cada igreja era autônoma, diretamente responsável ao Senhor Jesus. Recusavam comunhão com as igrejas romana, grega e armênia, por causa de sua infidelidade doutrinária, argumentando que já não eram verdadeiras igrejas de Cristo. Entre suas razões estavam:
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A união entre Igreja e Estado;
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O batismo de crianças;
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A permissão de descrentes na Ceia do Senhor;
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Outras práticas antibíblicas introduzidas ao longo do tempo.
Esses cristãos fiéis foram chamados de "Paulícios" (origem do nome incerta), "Thonraks" (por viverem na cidade de mesmo nome) e, mais tarde, ao migrarem para a Bósnia, de "Bogomilos" — do eslavônico, "amigos de Deus". Esse movimento perdurou por séculos.
Embora quase toda sua literatura tenha sido destruída, sobreviveu um livro intitulado A Chave da Verdade, escrito entre os séculos VII e IX, revelando suas crenças. Alguns pontos relevantes:
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O batismo era apenas para crentes genuínos;
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Realizado ao ar livre, em rios ou outras águas naturais;
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O candidato ajoelhava-se na água e fazia pública profissão de fé;
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O batizador devia ser moralmente irrepreensível;
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A cerimônia incluía leitura das Escrituras e oração.
Entre seus líderes conhecidos está Constantino, que mais tarde adotou o nome Silvano. Convertido em 653 d.C., após receber de um ex-prisioneiro armênio um manuscrito com os quatro evangelhos e as epístolas de Paulo, tornou-se um trabalhador incansável. Estabeleceu-se em Quibossa, na Armênia, mas viajou amplamente, levando muitos católicos e pagãos à conversão.
Após 30 anos de ministério, foi denunciado ao imperador oriental Constantino Pogonatus, que decretou sua morte em 684 d.C.. O oficial Simeão recebeu a missão de executá-lo e, cruelmente, forçou os próprios discípulos de Silvano a apedrejá-lo. Todos recusaram, exceto Justo, jovem criado por Silvano, que traiu seu benfeitor, matando-o com uma pedra — e recebendo elogios por isso. Assim, "Justo" mostrou-se um verdadeiro Judas.
Mas a história não termina aí. Simeão ficou profundamente impactado pelo testemunho dos cristãos de Quibossa. Sem paz interior, converteu-se a Cristo após três anos de luta espiritual, abandonou tudo e voltou à cidade como missionário, adotando o nome Tito. Contudo, Justo, o traidor, entregou-o às autoridades, e o imperador ordenou que Tito e muitos outros fossem queimados vivos.
Porém, o efeito foi contrário ao esperado. A coragem daqueles mártires inflamou a fé de milhares, que prosseguiram com ousadia na obra de Deus. Como já se disse: "a perseguição é apenas a segunda arma do diabo para destruir a Igreja; a primeira é a divisão interna".
Nos séculos XIV e XV, essas igrejas foram declinando. Algumas aliaram-se à Igreja Católica, devido à perseguição da Igreja Armênia; outras se associaram ao islamismo, o que culminou em sua extinção. A tentativa de união apenas por ter um inimigo comum mostrou-se desastrosa. Para uma verdadeira comunhão, é necessário compartilhar muito mais do que adversários: é preciso compartilhar a mesma fé e verdade.
VII — OS VALDENSES E OS ALBIGENSES (50–1500 d.C.)
Nos vales alpinos da região do Piemonte, na Itália, existiram igrejas que continuaram seu testemunho desde os tempos dos apóstolos. Assim como os Paulicianos, essas igrejas jamais se associaram ao sistema oficial centrado em Roma.
Por muito tempo, foram deixadas em paz, relativamente livres de perseguições, sobretudo por causa do isolamento natural das montanhas inacessíveis onde viviam, visto que, como bem sabemos, naquela época não existiam os meios de transporte que hoje temos à disposição.
Em 1689, um escritor afirmou:
"Os Valdenses são, de fato, descendentes daqueles que fugiram da Itália depois que São Paulo pregou o Evangelho entre eles. Eles deixaram seus pais e foram morar nas montanhas, onde, desde aquela época até hoje, têm pregado o Evangelho de pai para filho, na mesma pureza e simplicidade como foi pregado por São Paulo."
O nome "Valdense", atribuído a eles por outros, provém de Pedro Valdo (?-1217), de Lião, na França, um mestre proeminente entre eles no século XII.
Pedro Valdo era um comerciante e banqueiro bem-sucedido e nunca havia se interessado pelas coisas de Deus, até o dia em que um dos seus convidados faleceu repentinamente durante uma festa promovida por ele. Naquele momento, Valdo percebeu sua grande necessidade de salvação e se converteu a Cristo. Passou a estudar intensamente as Escrituras até que, em 1173, vendeu quase todos os seus bens — apenas reservando algo para o sustento de sua esposa — e saiu pregando o Evangelho.
Rapidamente, outros se juntaram a ele. No início, tentaram manter algum tipo de acordo com o sistema da Igreja Católica, mas, já em 1184, foram excomungados. O grupo passou a ser considerado uma "seita" e ficou conhecido como "Os Pobres de Lião". Por meio de seu testemunho, houve conversões até mesmo na Alemanha.
Pedro Valdo foi um dos poucos pregadores daquela época que morreu de morte natural, em 1217, na Boêmia (atual República Tcheca).
A influência de Pedro Valdo sobre aquelas igrejas foi significativa, especialmente no que diz respeito à responsabilidade evangelística. Até então, estavam satisfeitas em permanecer apenas na sua região, mas receberam um forte impulso para a obra missionária quando Pedro Valdo e seus companheiros lhes transmitiram uma visão mais ampla da necessidade de levar a Palavra da cruz a outros lugares.
VIII — OS LOLLARDOS, HUSSITAS E IRMÃOS UNIDOS (1300–1500 d.C.)
Este breve estudo não permite tratar com muitos detalhes os movimentos dos séculos XIV e XV, tempos em que houve um retorno significativo ao ensino das Escrituras.
Na Inglaterra, havia pessoas conhecidas como "Lollardos", palavra que significa "tagarelas" ou "faladores de bobagens" (compare com Atos dos Apóstolos 17:18). Eram, contudo, pessoas sinceras, reunidas em busca de um caminho mais fiel. É verdade que entre eles havia certa inquietação política, mas sua principal preocupação era espiritual: desejavam retornar ao ensino puro da Bíblia.
Nessa época, destacou-se um homem cuja liderança foi extremamente benéfica para o grupo — John Wycliffe (1320–1384), professor da Universidade de Oxford. Ele traduziu a Bíblia para a língua inglesa. Embora a Igreja tenha tentado persegui-lo, não teve êxito, pois Wycliffe era protegido por aliados influentes. No entanto, muitos Lollardos pagaram com a própria vida o preço por sua fé, especialmente a partir de 1400, quando, como vimos no caso dos Valdenses, a perseguição tornou-se feroz.
Uma nova lei foi então decretada na Inglaterra, exigindo que os chamados "hereges" fossem queimados vivos.
Um dos primeiros mártires foi John Badby, que foi executado diante do então Príncipe de Gales, mais tarde conhecido como Rei Henrique V. Ao ser lançado na fogueira, Badby gritou por misericórdia, e o príncipe ordenou que o retirassem das chamas. Levado à presença do príncipe, este lhe ofereceu um ano de sustento se renunciasse à "heresia" e retornasse à Igreja.
Surpreendentemente, descobriu-se que Badby não gritara por socorro humano, mas sim clamava a Deus por força para suportar as chamas! Vendo que sua convicção permanecia inabalável, o príncipe ordenou que fosse lançado de novo ao fogo.
Enquanto isso, as igrejas permaneciam ativas na Boêmia, onde Pedro Valdo havia falecido em 1217. Um homem muito influente entre os crentes daquela região foi John Huss (1369–1415), o qual também foi fortemente influenciado por Wycliffe.
Embora incentivasse os irmãos que estavam fora do sistema eclesiástico, John Huss desejava permanecer um bom católico. Foi convocado para um concílio na cidade de Constança, sob a promessa do imperador de que não seria prejudicado.
Huss não teria ido se o chamassem para Roma, pois não confiava no Papa. No entanto, confiando na palavra do imperador, foi até Constança — onde foi traído pelos bispos, levado a um julgamento farsesco (semelhante ao de seu Senhor) e, por fim, queimado vivo.
Os verdadeiros seguidores do Evangelho passaram então a ser conhecidos por um novo nome — "Hussitas". Mais um rótulo entre tantos aplicados aos fiéis seguidores do Senhor Jesus ao longo da história da Igreja.
Os Hussitas, também chamados de "Irmãos Unidos", sofreram terrivelmente, enfrentaram toda sorte de privações, e muitos foram mortos, embora em alguns momentos as autoridades civis tenham se cansado da perseguição e deixado os crentes em relativa paz.
O exemplo de altruísmo, dedicação, fidelidade e amor a Cristo demonstrado por aqueles irmãos deve servir de inspiração para que vivamos com consagração, testemunho e serviço ao Senhor — especialmente nestes dias em que gozamos de liberdade de culto em nossa nação.
IX — A INFLUÊNCIA DA REFORMA PROTESTANTE
O início do século XVI marcou a invenção da impressora mecânica. Como resultado dessa nova invenção, tornou-se mais fácil do que nunca produzir Bíblias, panfletos e livros para distribuição.
Uma nova edição do Novo Testamento em grego, com uma tradução renovada em latim, foi publicada em 1516 por Desidério Erasmo (1469–1536), um erudito holandês. Esta edição se tornou a base para todas as traduções bíblicas daquela época, sendo por isso chamada de "o ovo de Erasmo".
A partir do ano de 1520, deu-se início à chamada "Reforma Protestante", que ocorreu em diversas regiões como Alemanha, Suíça, Holanda, Escócia e, de forma mais mesclada, na Inglaterra.
Entre os principais líderes desse movimento, destacam-se:
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Martinho Lutero (1483–1546), na Alemanha;
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Ulrico Zwinglio (1484–1531), em Zurique, Suíça;
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Posteriormente, João Calvino (1509–1564), em Genebra, Suíça;
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João Knox (1514–1572), na Escócia.
Foram homens notáveis, piedosos e corajosos, grandemente usados e abençoados pelo Senhor em Sua obra. Contudo, mantiveram práticas que poderiam ter sido definitivamente abandonadas.
O problema fundamental da Reforma foi o esforço dos reformadores em se acomodar ao poder civil, tentando conciliar princípios bíblicos com ideias não bíblicas.
Com o tempo, passaram a justificar algumas dessas ideias com base no Antigo Testamento. Por exemplo:
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Ensinavam que não havia distinção entre Israel, o povo terreno de Deus, e a Igreja, Seu povo celestial.
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Procuravam estabelecer uma "igreja nacional" com base na nação de Israel.
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Utilizavam também o rito judaico da circuncisão como justificativa para a prática incorreta do batismo de crianças.
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O sistema clerical protestante tem, até hoje, raízes no sistema sacerdotal judaico.
O renomado poeta inglês João Milton, autor da obra O Paraíso Perdido, mesmo tendo ideias equivocadas em outros assuntos, mostrou discernimento neste ponto ao afirmar que:
"O novo presbítero é apenas uma versão renovada do antigo padre".
Em alguns ramos do protestantismo, a ideia de templos especiais e vestes litúrgicas para os pastores também foi retirada do Antigo Testamento.
É de extrema importância compreender as diferentes dispensações divinas e discernir claramente a diferença entre "judeus, gentios e a igreja de Deus" (1 Coríntios 10:32).
Devemos agradecer a Deus pelos reformadores, que redescobriram verdades preciosas sobre o Evangelho e a vida cristã. Os calvinistas do século XVII, conhecidos como "puritanos", deram especial ênfase à aplicação dessas verdades no viver diário do crente.
No entanto, quanto às verdades relacionadas à Igreja, nem os reformadores nem a maioria dos puritanos retornaram ao padrão do Novo Testamento. Por essa razão, o povo de Deus ainda hoje sofre com muitas ideias não bíblicas nesse campo.
Há quem clame por um retorno aos padrões puritanos; outros, aos princípios dos reformadores. Alguns ainda desejam reviver os valores de John Nelson Darby e dos primeiros "irmãos". Outros preferem seguir os valores dos primeiros missionários que levaram o Evangelho às suas regiões, e há ainda os que se guiam apenas pelos mestres atuais ou pelo padrão de outras igrejas.
Devemos concordar com tudo isso? De forma alguma!
Devemos, sim, agradecer a Deus por esses irmãos e por tudo o que ensinaram com grande luta e sofrimento. Devemos honrar sua memória e aproveitar seus ensinos, naquilo em que forem fiéis à Palavra de Deus.
Contudo, tanto individualmente, como cristãos, quanto coletivamente, como igrejas locais, nossa única aspiração deve ser o retorno às verdades inspiradas e preciosas das Escrituras.
A Bíblia é o único padrão confiável, o único guia seguro para compararmos o presente com o passado (confira 1 Coríntios 3:18–23 e Hebreus 13:7–8).
X — OS ANABATISTAS
Na época da Reforma, as igrejas que desejavam seguir os princípios da Palavra foram apelidadas de "anabatistas", ou seja, "rebatizadores", pois não reconheciam como válido o "batismo" de crianças.
Esse movimento ganhou força com a adesão de alguns irmãos bem preparados que inicialmente estavam com os reformadores, mas chegaram à conclusão de que estes não estavam obedecendo plenamente às Escrituras.
Isso se deu especialmente em Zurique, entre 1523 e 1524, quando surgiram divergências entre Ulrico Zwinglio e um grupo de jovens irmãos que antes o seguiam. Zwinglio havia entendido que, segundo as Escrituras, o batismo deveria ser ministrado apenas a crentes, e que o batismo infantil era uma prática errada. No entanto, pressionado pelas autoridades políticas, recuou de sua posição.
No dia 21 de janeiro de 1525, doze homens reuniram-se na casa de Conrado Grebel (†1526), onde ocorreu um batismo. Um ex-padre chamado Jorge Blaurock (1491–1529) batizou Grebel, mediante sua confissão de fé no Senhor Jesus Cristo. Este, por sua vez, batizou os demais.
A esse grupo juntaram-se outros irmãos valentes, como o Dr. Baltazar Hubmaier (c. 1480–1528) e Felix Manz (1498–1527), e muitos passaram a seguir mais de perto as verdades bíblicas.
Estima-se que apenas no ano de 1526, na cidade de Nikolsburg, o Dr. Hubmaier tenha batizado cerca de seis mil pessoas. Igrejas foram formadas na Suíça, Holanda, Áustria, Alemanha e até na Inglaterra.
Estabeleceu-se contato com os irmãos Valdenses e, em diversos lugares da Europa, pequenas igrejas começaram a se esforçar para retornar ao padrão do Novo Testamento.
Como era de se esperar, isso resultou em perseguições e mortes, mas também em fidelidade ao Senhor.
Muitos testemunhos de martírio poderiam ser citados — por exemplo, o de dois jovens de 16 e 17 anos, condenados à morte na Boêmia. O juiz, demonstrando "misericórdia", ordenou que fossem doutrinados pela igreja católica até completarem 18 anos.
Mais adiante, entre os séculos XVI e XVIII, surgiram igrejas que buscaram o padrão bíblico em países como França, Rússia, Inglaterra e Escócia — umas com mais êxito que outras.
XI — OS IRMÃOS (ASSIM CHAMADOS)
A — Os primeiros anos
Entre 1800 e 1830, houve um grande despertar entre os crentes na Inglaterra em relação aos princípios bíblicos.
Na Igreja Anglicana, duas tendências se manifestaram:
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Um movimento de retorno ao catolicismo;
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Um anseio sincero entre os crentes fiéis por retornar à Bíblia e obedecer fielmente aos ensinos das Escrituras, especialmente no que diz respeito à profecia e à Igreja de Deus.
Em Dublin, Irlanda (então sob domínio inglês), entre 1825 e 1827, dois grupos de irmãos começaram a se reunir para estudar a Palavra de Deus e partir o pão com simplicidade, conforme o Novo Testamento.
A maioria deles era jovem e foi unida por ideais bíblicos. Entre eles estavam:
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António Norris Groves (1795–1853), dentista em Exeter;
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João Gifford Bellet (1795–1864), advogado;
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Eduardo Cronin, ex-católico;
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João Versey Parnell (mais tarde Lorde Congleton), entre outros.
Norris Groves logo retornou à Inglaterra, mas pouco depois juntou-se ao grupo um jovem ex-advogado e pastor: João Nelson Darby (1800–1882), certamente um dos maiores eruditos entre os evangélicos de sua geração.
Autor de muitos livros e panfletos — destacando-se os Escritos Selecionados (34 volumes), Resumo dos Livros da Bíblia (5 volumes) — Darby também traduziu a Bíblia para o alemão, inglês e francês.
Embora Darby tenha se tornado um dos principais líderes do movimento — para o bem e para o mal —, é importante notar que ele não foi o iniciador da volta às Escrituras. Ele se uniu aos irmãos que já estavam reunidos com esse propósito.
Naquela mesma época, igrejas semelhantes foram formadas na Inglaterra, Irlanda, Escócia, País de Gales, Alemanha, Suíça e na Guiana Inglesa. Algumas surgiram sem saber da existência das outras — só mais tarde descobriram que estavam seguindo os mesmos princípios.
Um aspecto marcante no ministério de Darby foi a recuperação de certas verdades esquecidas das Escrituras, como as dispensações no governo de Deus e a vinda do Senhor antes do Milênio para buscar Sua Igreja.
A partir de 1831, conferências proféticas começaram a ser realizadas. Uma jovem viúva da nobreza, chamada Teodosia Howard (1800–1836), conhecida como Lady Powerscourt, impressionada pelos estudos proféticos, cedeu seu castelo, o Palácio Powerscourt, para essas reuniões, das quais Darby também participou.
Essas conferências eram abertas a todos os crentes e contavam com ampla participação.
Lady Powerscourt congregava com a igreja em Dublin e, por algum tempo, esteve noiva de Darby. O noivado, no entanto, foi rompido. Não se sabe ao certo quem tomou a iniciativa. Há quem diga que foi ela, receando que o casamento atrapalhasse o ministério de Darby; outros dizem que foi ele; há ainda quem afirme que a decisão foi mútua.
Fato é que ambos sofreram com a separação. Mais tarde, Darby escreveu:
"Recusei um casamento e parti um coração ao fazê-lo."
Irmãos de Dublin, especialmente um certo Hargreaves, também contribuíram negativamente, intrometendo-se indevidamente. Tristemente, esse tipo de atitude ainda ocorre hoje.
É necessário ressaltar o amor e a simplicidade daqueles primeiros tempos. Eduardo Cronin escreveu:
"Oh, que tempos benditos foram aqueles, quando João Parnell, William Stokes, eu e outros arrumávamos a sala aos sábados, colocando uma simples mesa com o pão e o vinho! Foram dias de alegria, com certeza aprovados pelo Senhor".
Já em 1830 havia de 5 a 6 igrejas semelhantes na Irlanda, e outras começaram a surgir espontaneamente em outros lugares.
Em Bristol, por exemplo, George Müller (1806–1898) e Henrique Craik (1805–1866), ambos ex-pastores batistas, começaram a se reunir de acordo com os princípios bíblicos em 1832.
Em 1836, Müller fundou seu primeiro orfanato, confiando inteiramente no Senhor para suprir as necessidades, sem jamais pedir ajuda a homens. Quando faleceu, aos 93 anos, centenas de crianças haviam sido cuidadas.
Na época, além da Capela Betsaida, outras sete igrejas semelhantes existiam em Bristol.
Em Barnstaple, o trabalho prosperava sob a liderança de Roberto Cleaver Chapman (1803–1902), ex-advogado e pastor batista, amado por todos, que chegou às mesmas conclusões bíblicas.
Em Plymouth, havia uma igreja próspera com mais de 700 irmãos em comunhão. Lá ensinavam homens capacitados como Benjamim Wills Newton, Samuel P. Tregelles (grande conhecedor das línguas bíblicas), Henrique W. Soltau, William Dyer e J. L. Barris. Essa igreja foi apelidada pelo mundo de "Irmãos de Plymouth" — um título equivocado, mas ainda usado por alguns.
O zelo missionário daqueles irmãos também merece destaque. Em 1829, António Norris Groves e outros irmãos partiram para Bagdá (atual Iraque), confiando apenas no Senhor. Posteriormente, Groves foi para a Índia.
Na Guiana Inglesa (hoje Guiana), Leonardo Strong, ex-pastor anglicano, abandonou a igreja oficial em 1827 e passou a viver pela fé, pregando a Palavra com simplicidade e alcançando muitos escravos.
Mesmo após a abolição da escravidão, muitos ex-escravos foram salvos. Em 1842, George Müller tomou conhecimento do trabalho e passou a enviar ajuda, embora Strong já estivesse sustentado exclusivamente pelo Senhor há 15 anos.
J. N. Darby também viajou para a Suíça e outros países, vendo frutos do Evangelho e o surgimento de igrejas. O próprio clero da época admitiu que esse movimento do Espírito de Deus sacudiu o mundo cristão de sua letargia.
Por isso, Satanás não ficou inerte. Dentro de vinte anos, uma divisão lamentável ocorreu — e seus efeitos ainda são sentidos até hoje.
XI — B — CONTENDA E DIVISÃO
O assunto que motivou a grande contenda que tão tristemente dividiu os irmãos é bastante complexo, mas devemos examiná-lo, ao menos em resumo. Em parte, tem muito a ver com o caráter complexo de John Nelson Darby.
Silas Gonçalves Filgueiras escreveu com propriedade:
"Darby tinha uma personalidade imensa e complicada, era um gênio, e, como costuma acontecer com tais pessoas, era psicologicamente anormal.
Devido à sua intensa devoção a Cristo, zelava para que a igreja fosse uma igreja pura.
No entanto, por causa do seu temperamento e do seu modo particular de compreender as coisas, suas atitudes acabaram desonrando o nome de Cristo, a quem tanto amava.
Tinha uma capacidade notável para perceber as verdades bíblicas; seus comentários são muito profundos.
Agia como se tivesse um chamado direto de Deus, como alguém plenamente convencido de estar no caminho certo, e considerava inimigos de Deus todos os que discordavam dele" (Os Irmãos, pp. 48–49).
Outro escritor recente, admirador de Darby, escreveu:
"Darby tinha um caráter e uma personalidade muito fortes. Seus seguidores falaram quase exclusivamente de suas qualidades positivas, enquanto seus opositores destacavam apenas suas falhas. Quem tinha razão? Depois de anos estudando a vida de Darby, devo dizer: ambos estavam certos."
(Max N. Weremchuk – John Nelson Darby, p. 142).
Por outro lado, com relação a George Müller, um dos outros protagonistas naquela tragédia, temos de admitir, por mais que admiremos sua fé e devoção a Cristo, que ele também demonstrava, de forma evidente, traços de autoritarismo e intolerância em sua personalidade. Isso, mais tarde, acabaria minando qualquer possibilidade de reconciliação.
No início da década de 1840, Darby, embora residindo em Plymouth, viajava constantemente, cumprindo seu ministério na obra do Senhor. Por isso, como era de se esperar, acabou perdendo influência na igreja local.
Benjamin Wills Newton, um homem com forte tendência autocrática, assumiu o controle da igreja, juntamente com J. L. Harris. Esses dois irmãos estavam levando a igreja a abandonar certos princípios bíblicos.
Em 1845, Darby retornou e tentou restaurar a situação na igreja, mas não teve sucesso e, em 28 de dezembro daquele ano, retirou-se e formou outro ajuntamento. Começou com 60 membros em comunhão, e logo esse grupo começou a crescer continuamente.
Logo em seguida, foi convocada uma reunião em outra cidade com o objetivo de ouvir as explicações de Darby sobre a lamentável separação. Nessa reunião, o piedoso Robert Chapman disse a Darby:
— "O irmão deveria ter esperado mais tempo antes de agir como agiu."
Darby respondeu:
— "Esperei seis meses antes de me separar."
Ao que Chapman replicou:
— "Em Barnstaple, teríamos esperado seis anos."
Após esses eventos, complicações adicionais surgiram. B. W. Newton permitiu que J. L. Harris publicasse anotações a respeito da humanidade do Senhor Jesus Cristo que, sem dúvida, eram heréticas. Não precisamos nos alongar nos detalhes disso, pois todos os irmãos condenaram tal doutrina, e o próprio Newton logo reconheceu seu erro, fazendo uma retratação por escrito, publicada no mesmo ano (1847).
No entanto, aquela falha serviu como um instrumento nas mãos de Darby, uma espécie de "vara" que ele usaria para condenar a igreja original, mostrando que ela estava errada. Muitos que antes não apoiavam Darby acabaram unindo-se ao seu grupo.
Se tudo tivesse parado aí, seria apenas mais um capítulo triste na história das divisões nas igrejas locais. Mas o "pai da mentira" estava apenas começando seu trabalho!
Dois irmãos da igreja original em Plymouth mudaram-se para Bristol, em 1848. Depois de se comprovar que eles não aceitavam a doutrina de Newton, foram recebidos pela igreja local. Darby, no entanto, acreditava que, existindo erro em uma igreja, todos os seus membros estavam contaminados.
Por isso, concluiu que a igreja de Bristol, ao aceitar aqueles irmãos, estava apoiando a heresia e, consequentemente, rompeu comunhão com ela.
Um grupo de seguidores de Darby, liderado por um irmão chamado George Alexander, separou-se e formou um novo ajuntamento. Como consequência, a igreja em Bristol pronunciou-se oficialmente contra a doutrina de Newton, declarando-a herética.
Nessa época, Newton já não estava mais em Plymouth — ele se mudou em 1847 e, até sua morte em 1899, nunca mais se reuniu com os chamados "Irmãos".
O problema básico era que a igreja em Bristol e outras semelhantes defendiam um princípio bíblico que Darby, aparentemente, já não aceitava: a autonomia administrativa de cada igreja local.
Darby desenvolveu a ideia de que existe uma igreja visível (correspondente ao Corpo de Cristo na terra), à qual pertencem todas as igrejas. Se uma igreja local não caminha em conformidade com o restante, ela estaria, segundo ele, fora do Corpo — ou seja, deixaria de ser uma verdadeira igreja.
No entanto, este não é um princípio bíblico. A Palavra de Deus fala de uma igreja invisível — o Corpo de Cristo — composta por todos os que pertencem ao Senhor Jesus, e de igrejas locais diretamente controladas por Ele, que está no meio das igrejas que se reúnem em Seu Nome, sem ligação denominacional.
É arrogância de um homem, ou grupo de homens, reivindicar autoridade divina e excluir uma igreja da comunhão. Isso cabe somente ao Dono das igrejas.
Naturalmente, cada servo do Senhor tem o direito de, diante de Deus, decidir onde entende que pode servi-Lo com maior proveito espiritual. Muitos podem ter dificuldades em certos ajuntamentos, mas isso não lhes dá o direito de criticar os que não pensam como eles. Todos nós compareceremos diante do Tribunal de Cristo.
O princípio ensinado por Darby revelou-se desastroso. Segundo esse princípio, sempre que uma igreja enfrentasse um problema, todas as demais teriam de se pronunciar a respeito, o que, na prática, colocava tudo nas mãos de alguns irmãos reunidos em encontros centrais de "cuidado".
Isso, mesmo que nem sempre ocorra, abre caminho para a formação de uma ditadura espiritual. Darby forçou todos a tomarem posição com relação à igreja de Bristol, o que resultou numa divisão que se espalhou mundialmente e jamais foi sanada.
Os seguidores dos princípios de Darby são conhecidos como "Irmãos Exclusivistas", enquanto os que defendem a autonomia das igrejas locais são chamados de "Irmãos Abertos".
São rótulos inadequados.
Os exclusivistas mais moderados já não acusam os irmãos abertos da heresia de Newton (uma acusação totalmente infundada), mas ainda os acusam de "independência" ou até mesmo de "neutralidade" com relação a Cristo.
Isso se baseia no fato de que os irmãos abertos se recusam a admitir que o grupo dos exclusivistas seja o único Corpo de Cristo.
O princípio equivocado de comunhão só poderia gerar confusão — como, de fato, gerou.
CONCLUSÃO
Então, é este o fim da história? De forma alguma! Relatos históricos tais como este têm sido elaborados, às vezes, com o propósito de demonstrar que todos os fatos têm-se desenvolvido para provar que a "nossa" obra é o verdadeiro cúmulo de tudo quanto Deus quer fazer aqui na terra.
Tenho lido tais conceitos emitidos por Batistas, pelo Movimento Pentecostal, pela seita chamada "Igreja Local" e também, tristemente, pelos vários grupos dos chamados "Irmãos".
Que o Senhor nos guarde de tamanha arrogância!
Enquanto Cristo não voltar para buscar a Sua igreja, Ele é soberano e pode usar quem Ele quiser na obra dEle.
A nossa responsabilidade em nossa geração é, simplesmente, reunir em nome de Cristo e na simplicidade das Escrituras e procurar implantar os princípios bíblicos em nossos ajuntamentos.
As Escrituras são o tribunal final de autoridade, não a história de bons irmãos, por mais útil que seja.
O Senhor Jesus é o único que merece a nossa lealdade incondicional.
Que sejamos fiéis a Ele e à Sua Palavra!
Jaime C. Jardine