Santificação
A palavra grega hagiasmos é usada dez vezes no Novo Testamento e, na língua portuguesa, é sempre traduzida ―santificação‖. As dez ocorrências são: Rm 6:19, 22; I Co 1:30; I Ts 4:3, 4, 7; II Ts 2:13; I Tm 2:15; Hb 12:14 e I Pe 1:2. Há substantivos cognatos usados também.
A nota de rodapé da tradução de Romanos 1:4 de JND, diante da palavra ―santidade‖ na expressão ―o espírito da santidade‖, vale a pena ser citada:
Hagiosunee, a natureza e qualidade em si mesma, como em II Coríntios 7:1 e I Tessalonicenses 3:13 — diferente de hagiasmos, o efeito prático produzido, o caráter em atividade, traduzido santificação [veja as referências acima]. Outra palavra, hagiotes, é usada somente em Hb 12:10 [contudo Vine sugere que é usada também em II Co 1:12].
A palavra na forma verbal, hagiazo, ocorre 26 vezes. Os escritores Hogg e Vine mostram que esta palavra tem uma série de ligações interessantes.
O verbo correspondente hagiazo é traduzido ―santificado‖ em Mateus 6:9; Lucas 11:2; Apocalipse 22:11. É usado também para descrever:
a) o ouro que adorna o templo e a oferta colocada sobre o altar (Mt 23:17, 19);
b) alimento (I Tm 4:5);
c) a esposa descrente de um salvo (I Co 7:14);
d) a purificação cerimonial dos Israelitas (Hb 9:13);
e) o nome do Pai, (Lc 11:2);
f) a consagração do Filho pelo Pai (Jo 10:36);
g) o Senhor Jesus Se dedicando à redenção do Seu povo (Jo 17:19);
h) a separação do salvo para Deus (At 20:32, Rm 15:16).
i) o efeito da morte de Cristo no salvo (Hb 10:10, por Deus; Hb 2:11; 13:12, por Cristo).
j) a separação do salvo do mundo no seu comportamento — pelo Pai por meio da Palavra (Jo 17:17, 19);
k) o salvo que se afasta das coisas que desonram a Deus e Seu evangelho (II Tm 2:21);
l) o reconhecimento do Senhorio de Cristo (I Pe 3:15).
Destas considerações, fica claro que o assunto da santificação não é limitado a pessoas. Isto também é visto no Velho Testamento onde, por exemplo, as vestes de Arão eram santificadas (Êx 28:41 e Lv 8:30); também o azeite da santa unção (Êx 30:25) e o sétimo dia (Gn 2:3). Também fica claro que a palavra em si não indica, necessariamente, um estado de impureza antes da santificação ser realizada. Isso é visto especialmente no caso do Senhor Jesus, quando Ele diz em Jo 17:19: ―Me santifico a mim mesmo‖.
Qual o significado da palavra?
Tudo que já escrevemos nos permite agora chegar a uma definição da santificação — o que significa? Não resta dúvida que a idéia básica em santificação é ―separar para Deus‖. Mas há mais que isso. Obviamente, há um propósito nisto, um alvo em vista. Assim a definição deve ser estendida para incluir este propósito: ―separação para Deus (de uma pessoa ou objeto) tendo em vista a realização de um propósito divino‖. No caso daqueles que precisam de purificação antes da sua santificação, há obviamente a necessidade da santificação ter um aspecto negativo (separado de algo), como também um aspecto positivo (separado para algo). Por isto a definição de Gooding e Lennox é a seguinte:
Santificação tem dois aspectos, um negativo e o outro positivo:
1. Negativamente, envolve a separação da sujeira e impureza; em outras palavras, purificação.
2. Positivamente, significa a separação para Deus e Seu serviço: em outras palavras, consagração.
Ambas são apresentadas em Hebreus 9:13-14. Aqui o escritor está contrastando os meios antigos de santificação usados pelos judeus com os usados agora pela cristandade. Ele liga a santificação tanto com a purificação da impureza, como com a consagração ao serviço de Deus.
Hogg e Vine também têm um comentário interessante:
Visto que todo salvo é santificado em Cristo Jesus (I Co 1:2; compare com Hb 10:10), um dos nomes comuns a todos os salvos no Novo Testamento é ―santos‖ (hagioi), isto é ―santificados‖ ou ―pessoas santas‖. Assim, ser santo, ou santificação, não é algo merecido; é o estado para o qual Deus, em graça, chama os pecadores, e no qual eles começam sua carreira como cristãos.
Hogg também observa: ―Santificação significa, não uma mudança de natureza, mas uma mudança de relacionamento‖.
Isso é ilustrado na importante passagem em I Coríntios 7:12-14, onde Hogg continua:
O caso do marido descrente e sua esposa crente, ilustra o significado das palavras ―santificar‖ e ―santo‖. A esposa crente deve continuar vivendo com seu cônjuge descrente e recomendar o Evangelho, pelo fiel desempenho das suas responsabilidades no relacionamento conjugal. Mas, surge agora a pergunta: Será que a continuidade deste relacionamento não contaminará o cônjuge salvo? A própria natureza nos ensina muitas lições (I Co 11:14), e aqui temos uma delas — nada justifica uma mãe abandonar seus filhos. Será que cuidar dos seus filhos contamina uma mãe? Claro que não! A natureza dos filhos continua como era antes da mãe aceitar o Evangelho, mas associação com eles não a contamina; ela não os abandona. Também, o seu relacionamento com eles não garante a sua salvação, mas dá-lhes a vantagem das suas orações e exemplo. Assim é também com o marido (ou esposa) descrente; a associação com ele não contamina a mãe assim como os filhos dele com ela não a contaminam. Pelo exemplo dela ele pode ser ganho para Cristo ―sem palavra‖, como I Pedro 3:1 diz.
Consideração detalhada
As cinco referências à santificação no Novo Testamento nos dão um esboço útil do assunto. Elas mostram que a santificação é uma obra do Espírito Santo antes da nossa conversão, em I Pedro 1:2: ―Eleitos, segundo a presciência de Deus Pai, em santificação do Espírito, para a obediência e aspersão do sangue de Jesus Cristo‖, e II Tessalonicenses 2:13: ―Mas devemos sempre dar graças a Deus por vós, irmãos amados do Senhor, por vos ter Deus elegido desde o princípio para a salvação, em santificação do Espírito, e fé da verdade‖.Também vemos a santificação como uma obra posicional do Filho, em I Coríntios 1:30: ―Mas vós sois dele, em Jesus Cristo, o qual para nós foi feito por Deus sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção‖. Entretanto há também um aspecto prático e progressivo da santificação, e vemos isto em I Tessalonicenses 4:3-4,―Porque esta é a vontade de Deus, a vossa santificação; que vos abstenhais da prostituição; que cada um de vós saiba possuir o seu vaso em santificação e honra‖.
Vamos agora considerar o assunto nesta ordem, seguindo o esboço sugerido por Lovering.
Santificação antes da conversão
A obra do Espírito Santo antes da conversão é vista, claramente, nos versículos citados acima. Em II Tessalonicenses 2:13, lemos que Deus os tinha escolhido ―desde o princípio‖ para a salvação. Assim, a sua salvação ―não originou com eles mesmos, mas com Deus que os tinha escolhido para serem o alvo da Sua graça‖. Para efetuar esta escolha no tempo, e assim cumprir o propósito Divino, a ―santificação do Espírito‖ foi necessária — foram separados para Deus por Ele. É verdade que foi necessária também a ―fé da verdade‖, por parte de cada pessoa, porque ―a fé vem pelo ouvir e o ouvir pela palavra de Deus‖ (Rm 10:17).
Hogg e Vine fazem um comentário interessante sobre ―fé da verdade‖. Eles indicam que é literalmente ―de verdade‖, porque o artigo não está presente.
Quando o artigo está presente, o fato específico, ou os fatos apresentados estão em vista, mas onde o artigo está ausente é a qualidade moral destes fatos que está em vista. A vontade para crer em verdade é a condição necessária antes que a obra de Deus possa começar na alma. Aqui, lembramos das palavras do Senhor Jesus: ―Se alguém quiser fazer a vontade dEle, pela mesma doutrina conhecerá se ela é de Deus, ou se eu falo de mim mesmo‖ (Jo 7:17).
A capacidade pela qual a verdade é reconhecida cresce com o uso; por outro lado, o ministério do Espírito Santo, que começa com a revelação da verdade do Evangelho ao indivíduo, continua a guiar o crente em toda a verdade (Jo 16:13); renovando-o para o conhecimento (Cl 3:10); por isso, temos as orações do apóstolo pelos convertidos, em Filipenses 1:9-10 e Colossenses 1:9. Quando foram chamados pelo Evangelho, foi para que pudessem conhecer a verdade e para que a verdade os libertasse (Jo 8:32). Somente o amor pela verdade pode salvar alguém de praticar o erro.
Há um lindo resultado desta obra de santificação do Espírito Santo. A salvação para a qual os tessalonicenses foram chamados pelo Evangelho de Paulo (II Ts 2:14), foi para ―alcançardes a glória do nosso Senhor Jesus Cristo‖. Eles iriam compartilhar na revelação da glória do Senhor do céu! Veja também II Tessalonicenses 1:7-10.
Assim descobrimos um desenvolvimento impressionante que pode ser resumido da seguinte maneira:
• Deus elegeu — desde o princípio;
• O Espírito santificou;
• O Evangelho foi pregado (note sua natureza: ―nosso evangelho‖);
• O chamado eficaz foi feito;
• Os tessalonicenses creram;
• A glória está por vir.
Notamos que tanto a eleição como o chamado estão no tempo aoristo — no primeiro caso foi num ponto antes do tempo, e no segundo foi num ponto de tempo. Smith tem observações interessantes em relação a esta escolha Divina e, de fato, em relação a esta passagem toda (II Ts 2:13-14):
―Elegeu‖ aqui é heilato (de haireomai, escolher) e nas três ocasiões em que esta palavra é usada no Novo Testamento a idéia é de escolha pessoal (veja Fp 1:22 e Hb 11:25). Está no aoristo, mas mesmo que a escolha fora selada num momento de tempo, estava fora do tempo pois foi desde o princípio, no sentido mais amplo daquele passado da eternidade. Também está no indicativo médio, Deus fazendo a escolha para Si mesmo, indicando o propósito da escolha e não o tempo da escolha. As palavras comuns para eleição são: exaireomai (como para a escolha de Israel no Velho Testamento), proorizo (predestinados, escolhidos anteriormente), e eklegomai (escolher, como em I Ts 1:4; Ef 1:4; Lc 10:42; At 6:5).
Não é nossa intenção divagarmos sobre o bendito assunto da eleição, pois não é uma área para as nossas mentes finitas se envolverem; pelo contrário, é uma verdade a ser crida. Entretanto, o apóstolo apresenta o equilíbrio perfeito do assunto nestas duas epístolas, pois, ao passo que em I Tessalonicenses 2:13 ele dá graças a Deus incessantemente por eles terem recebido a palavra (a responsabilidade do homem), aqui ele dá graças a Deus por Sua escolha soberana.
A escolha foi ―desde o princípio‖ (ap’arches), um termo que Paulo não usa em nenhum outro lugar, mas que, como João 1:1(en arche) e II Timóteo 1:9, nos leva de volta à era ―de eternidade‖; veja também Mateus 19:4, I João 2:13. É obviamente errado limitar a escolha soberana de Deus a um ponto de tempo, ou atribuí-la a algum mérito por parte do objeto do Seu amor; (compare Ef 1:4; Ap 13:8; 17:8). … Além disso, o versículo é expressivo de um princípio geral da operação de Deus… Isto é enfatizado no propósito da escolha, pois foi ―para a (eis) salvação‖ (veja I Ts 1:4-5); este é o alvo de Deus para aqueles que Ele escolheu em Sua soberania.
Há uma diferença que deve ser notada entre a primeira e a segunda epístolas, em relação ao propósito da salvação; na primeira epístola é ―da‖ (ira), e na segunda ―para‖ (glória). Mesmo assim, há os que ainda considerariam a salvação, aqui, como limitada à salvação da ira do dia do Senhor, como em I Ts 1:10 e, 5:9, e tal garantia teria sido suficiente para os atribulados tessalonicenses. Entretanto, o contexto imediato vai além, colocando a salvação em contraste com ―perecendo‖ (v. 10), e ―juízo‖ (v. 12), o terrível estado dos homens na sua classificação final como perdidos. Aqui, temos a salvação planejada desde o princípio (isto é, desde a eternidade), e, no v. 14, Paulo irá falar dela, primeiramente sendo efetuada no tempo através do chamamento, e depois, da sua consumação futura ―para alcançardes a glória de nosso Senhor Jesus Cristo‖. Assim, temos a salvação na sua esfera total, passada, presente e futura, concebida no coração de Deus antes dos tempos, efetuada no tempo, e Sua indescritível glória futura.
A operação da escolha de Deus sendo efetuada no tempo, é ―em (ou, por) santificação do Espírito (genitivo subjetivo e, portanto, operado pelo Espírito), e fé da verdade‖. A ausência do artigo sugere a força moral da verdade e não a verdade como tal, e sendo um caso objetivo genitivo, indica ―crença, ou fé, na verdade‖. Em nenhum sentido pode en, neste lugar, ser traduzido, com relação à santificação, por ―pela‖ (como na ARA), ou por ―para‖, como alguns sugerem. Apesar da ausência do artigo antes de Espírito, como em Rm 8:9; I Co 2:4 e I Pe 1:2 (onde em cada caso é evidente que se refere ao Espírito Santo), as palavras aqui falam claramente da obra do Espírito Santo, agora em separar para Deus os objetos do Seu amor, trazendo-lhes a palavra da verdade para que creiam e continuem na fé. Este é o lado divino da obra de salvação, da mesma forma que o crer na verdade (sua aceitação pela fé) descreve o lado humano. É santificação posicional e não prática, embora os resultados práticos devam sempre ser considerados (I Ts 4:3;7). É a energia do Espírito Santo em trazer a graça de Deus aos homens, mortos em ofensas e pecados (veja I Ts 1:5), e é o prelúdio essencial para fé na verdade.
O versículo paralelo em I Pe 1:2 (veja também I Co 6:11) ajuda a entender isto, e particularmente mostra que a operação do Espírito Santo é a iniciativa divina de separar o indivíduo para Deus, quando então ele recebe o evangelho. Bem disse M. Lutero: ―Eu não posso, pela minha própria razão ou força, crer em Jesus Cristo ou vir a Ele‖. O Espírito precisa primeiramente separar para Deus, despertar aqueles fracos desejos iniciais de buscar a Deus, convencer de pecados, levar a Cristo e trazer fé ao coração. Estando sob a influência do mundo, da carne e do diabo, o homem natural precisa, como um pré-requisito essencial para um novo nascimento, da ação do Espírito Santo, pois sem ela não haveria salvação. Embora ―o crer (ou fé) na verdade‖ (não tem artigo) seja, no final, o lado humano da salvação, o Espírito Santo precisa primeiramente introduzir, no coração, a atitude moral para que o homem assim deseje, a fim de que ele possa ser liberto pela verdade (Jo 8:32). Note o contraste em v. 12 .
Em relação ao v. 14, Smith continua:
A continuação da atuação do Espírito Santo na salvação agora é explicada. Querendo efetuar a obra inicial, Deus chama por meio do evangelho: ―Para o que (salvação) vos chamou (Deus)‖. Da mesma forma que ―elegido‖, este verbo está no tempo aoristo, mas desta vez indicando um momento no tempo. É interessante notar que se refere a uma ação apenas, em contraste com o tempo presente de ―chama‖ em I Ts 2:12 e 5:24, indicando, como na verdade a palavra implica, um chamado para o qual houve uma resposta. Este é o chamado efetivo, não o chamado geral do evangelho, como temos em Mt 20:16; 22:14.
Paulo escreve ―pelo nosso evangelho‖, porque mesmo sendo o ―evangelho de Deus … acerca de Seu Filho, Jesus Cristo‖ (Rm 1:1-3), Deus, em Sua graça, usa homens e não anjos para proclamá-lo. Foi depositado com Paulo como uma responsabilidade sagrada, e ele, junto com seus cooperadores, se identificaram com este evangelho, não apenas em sua proclamação, mas também como evidência dos seus efeitos. Pertencia a eles, no sentido de ser a mensagem que eles pregavam, e que os tessalonicenses tinham ouvido e recebido, mas mais ainda, eles compartilhavam do seu poder. O evangelho não é meramente um tema, mas é o poder de Deus para salvar. Paulo proclamava a mensagem da qual ele era o principal beneficiário (I Tm 1:11-16; II Tm 1:6-14), e pregava a Cristo como O conhecera, um Homem visto através da glória da ressurreição.
Compare ―para alcançardes a glória de nosso Senhor Jesus Cristo‖ com I Ts 2:12. Não há artigo antes de ―glória‖ no texto grego, e isso indica que o chamado do evangelho tem em vista alcançar esta glória que é essencialmente a possessão de Cristo … A glória mencionada é obviamente a glória de Cristo, como o último Adão, Aquele que Deus glorificou (At 3:13), tendo em vista aquilo que Ele alcançou na cruz para a glória de Deus‖.
A passagem em I Pedro 1:2 segue muito de perto aquilo que já mencionamos em II Tessalonicenses 2:13-14. ―Eleitos segundo a presciência de Deus Pai, em [en] santificação do Espírito, para a obediência e aspersão do sangue de Jesus Cristo‖.
Isto foi parafraseado por Hogg e Vine da seguinte maneira: ―… àqueles que foram eleitos de acordo com a presciência de Deus o Pai, e separados pelo Espírito Santo, para que possam obedecer a verdade [veja v. 22], e assim receber a proteção do sangue aspergido de Jesus Cristo‖.
Escrevendo em outro lugar, Hogg acrescenta: ―O propósito é do Pai. Sua é a graça predestinadora; para que este propósito seja realizado, os homens são, em primeiro lugar, separados para Deus pelo Espírito Santo. No devido tempo, segue-se o ouvir do
Evangelho e o seu chamado ao arrependimento para com Deus e fé no Senhor Jesus Cristo. A este os eleitos rendem ‗a obediência da fé‘ (Rm 1:5; 16:26, compare At 5:32; 6:7; II Ts 1:8; Hb 5:9), que os coloca sob a proteção do sangue de Cristo. Aqui, a referência é à Páscoa no Egito, onde o sangue do sacrifício foi aspergido nas ombreiras e na verga das portas das casas dos israelitas (Êx 12:7, 13)‖.
Esta referência a Êxodo 12 é interessante porque geralmente a referência é Êxodo 24. O comentário de Nicholson é apto:
Aos eleitos, santificados para obediência, se aplica todo o valor e virtude do ―sangue de Jesus Cristo‖. Isto não é o derramamento do sangue, mas a aspersão dele. O sangue precisava ser derramado antes de poder ser aspergido, mas poderia ser derramado e sua eficácia nunca ser aplicada ao indivíduo. O derramamento do sangue é a entrega da vida como sacrifício pelo pecado. É a provisão feita. A aspersão do sangue é a aplicação do valor e da eficácia do sacrifício. Esta é a comunicação do poder.
No Velho Testamento a aspersão do sangue era vista em relação ao seu poder para proteger o primogênito no Egito, seu poder para purificar o sacerdote para o serviço, seu poder para preparar o caminho de entrada ao lugar santíssimo, e seu poder para purificar o leproso da sua imundícia cerimonial. Porém, parece que aqui se refere a Êxodo 24, quando Moisés tomou o sangue do sacrifício e aspergiu a metade dele sobre o altar e em seguida leu o livro da aliança na presença do povo que respondeu, prometendo obedecer. Moisés então tomou a outra metade do sangue e aspergiu o povo dizendo: ―Eis aqui o sangue da aliança …‖. Aquele sangue ligou o povo ao altar dos frequentes e repetidos sacrifícios. Prendeu-os à palavra da sua própria frágil promessa. Sua aplicação era limitada à nação. Quão gloriosamente diferente era a porção dos cristãos a quem Pedro estava escrevendo. Esta aspersão de sangue associa os cristãos do NT com uma obra consumada, um sacrifício que nunca precisará ser repetido (Hb 10:11-12). liga o cristão à infalível promessa de Deus (Hb 6:17,18). A sua eficácia é ilimitada em favor de ―quem quiser‖, seja judeu ou gentio.
Devemos observar a atividade da Trindade em ambas as passagens consideradas. O Deus Triúno está ativo na salvação da humanidade!
Há duas outras passagens onde a obra do Espírito Santo está ligada à santificação, embora não necessariamente neste aspecto de atividade antes da conversão. A primeira destas é Romanos 15:16. Nesta passagem, ―Paulo fala da graça de Deus que o fez ‗ministro [leitourgos, usado de alguém que tem responsabilidades públicas] de Jesus Cristo para os gentios, ministrando [hierourgeo, ministrando com sacrifícios] o evangelho de Deus, para que o oferecimento [como um sacrifício é oferecido] dos gentios possa ser aceitável, sendo [tendo sido, particípio perfeito] santificada pelo Espírito Santo‘. Aqui o apóstolo se apresenta como um sacerdote oferecendo a Deus os gentios que já tinham sido santificados, ou separados para Deus pelo Espírito Santo. (compare Jo 10:3.4,16 e Atos 18:10)‖.
A segunda passagem é I Coríntios 6:11. O apóstolo lembra os seus leitores dos vícios que eram característicos do mundo pagão. Continuar nestas coisas era evidência de que não teriam futuro no reino de Deus. Então ele diz: ―e é o que alguns têm sido, mas haveis sido lavados [vos lavastes a vós mesmos], mas haveis sido [fostes] santificados, mas haveis sido [fostes] justificados em nome do Senhor Jesus e pelo [no] Espírito do nosso Deus‖. O único outro lugar no Novo Testamento onde achamos uma referência à lavagem associada com pecado é em Atos 22:16, onde o verbo também está na voz média, indicando algo obtido por si próprio.
O Espírito de Deus tinha operado na sua santificação antes da conversão levando-os a invocar o Nome do Senhor, e receber a justificação.
Assim, vemos que a ―santificação do Espírito é o Seu ato soberano pelo qual o crente, o objeto da graça predestinadora de Deus, é separado para Deus; um ato que precedeu até o seu ouvir do Evangelho; realmente sem data, pois, precedeu ‗a fundação do mundo‘ (Ef 1:4)‖.
A santificação posicional
No exato momento em que colocamos nossa fé em Cristo, Deus nos dá a bênção da santificação. Não é algo que obtemos pelo nosso esforço — é algo que temos. Além disto, esta santificação inicial transforma cada salvo num santo. Como na justificação, é efetuada com base na morte de Cristo. Hogg e Vine escrevem:
O efeito da morte de Cristo, no relacionamento do crente com um Deus Justo, é justificá-lo (Rm 5:9); sendo removida a culpa do pecado, o pecador justificado se apresenta diante do tribunal sem condenação (Rm 5:2). O efeito da morte de Cristo no relacionamento do crente com um Deus Santo é santificá-lo (Hb 10:10; 13:12); sendo removida a impureza do pecado, o pecador santificado entra no Santo dos Santos (Hb 10:19).
Portanto, lemos que Deus fez com que Cristo fosse ―justiça e santificação‖ para nós (I Co 1:30). Como é evidente que não há graus de justificação, assim também não há graus de santificação; uma coisa ou é separada para Deus ou não é, não há meio termo; uma pessoa está em Cristo, justificada e santificada, ou está fora de Cristo nos seus pecados e alienada de Deus. Embora não haja graus de santificação, é evidente que pode e deve haver progresso nesta santificação; assim o salvo é exortado a ―seguir … a santificação‖, e é avisado que sem esta santificação ―ninguém verá a Deus‖ (Hb 12:14).
O assunto da justificação é o tema principal da Epístola aos Romanos, enquanto que o assunto da santificação neste contexto é o tema principal da Epístola aos Hebreus. A cruz, certamente, é o centro de ambos. ―Temos sido santificados pela oblação do corpo de Jesus Cristo, feita uma vez‖ (Hb 10:10); e ―com uma só oblação aperfeiçoou para sempre os que são santificados‖ (Hb 10:14). Assim o Senhor Jesus é o Santificador e nós somos os santificados (Hb 2:11). A idéia reaparece também mais tarde nesta epístola. ―E por isso também Jesus, para santificar o povo pelo seu próprio sangue, padeceu fora da porta‖ (Hb 13:12).
Assim o direito do salvo de estar no Céu não depende nem do seu mérito nem do seu esforço, mas daquilo que o Senhor efetuou ―com uma só oblação‖ — ―aperfeiçoando para sempre‖.
A santificação prática
Não deve nos surpreender que esta santificação posicional precisa ser demonstrada por nós no sentido prático. Isso nos traz às três ocorrências da palavra ―santificação‖ em I Tessalonicenses 4:3, 4, 7. O apóstolo diz: ―Esta é a vontade de Deus, a vossa santificação‖. Wilson tem um excelente comentário sobre estes versículos que merece ser citado.
O mandamento de Paulo tinha sido entregue aos tessalonicenses quando ele estivera entre eles (v. 2). Não foi meramente um conselho que ele deu, mas um mandamento dado pela autoridade do Senhor Jesus Cristo, e ele esperava que fosse repassado de um santo para outro. Eles deveriam ter sabido que o Senhor iria estabelecê-los ―irrepreensíveis em santidade diante de nosso Deus e Pai, na vinda de nosso Senhor Jesus Cristo com todos os Seus santos‖ (3:13). Assim, como poderiam ficar surpreendidos ao saber que a vontade de Deus para eles era a sua santificação presente (v. 3)? Esta santificação foi explicada, aos leitores, pelo apóstolo em três frases:
i) ―que vos abstenhais da prostituição‖ (v. 3);
ii) ―que cada um de vós saiba possuir o seu vaso em santificação e honra‖ (v. 4);
iii) ―que ninguém oprima ou engane a seu irmão em negócio algum‖ (v. 6).
A primeira frase é semelhante aos termos da assembléia em Jerusalém (At 15:20, 29). A proibição da prostituição (fornicação) incluiria uma grande variedade de relacionamentos sexuais ilícitos. O contexto não exclui o adultério, o inclui, e também inclui a atividade homossexual. A segunda e terceira frases definem, respectivamente, os limites de conduta em relação a cada santo individual e o seu próprio corpo; e em relação a cada santo e seu irmão.
Um salvo deve dominar seu corpo, não somente no sentido de I Co 9:27: ―subjugo o meu corpo, e o reduzo à servidão, para que, pregando aos outros, eu mesmo não venha de alguma maneira a ficar reprovado‖. Por razões positivas, e também negativas, ele deve controlar o seu corpo especificamente em relação aos seus desejos sexuais. Positivamente, o seu corpo deve estar ligado com ―santificação e honra‖ (v. 4). Como estes dois substantivos são qualificados por uma única preposição no grego, temos reforçada a verdade de que Deus tem prazer na santidade. Negativamente, viver uma vida dissoluta ―na paixão da concupiscência‖ é viver como os gentios (v. 5). Percebemos quão vergonhoso é este estado pela frase do apóstolo: ―que não conhecem a Deus‖. Os gentios idólatras serviam a deuses que eram personificações das suas próprias ambições e desejos. Como resultado, a lascívia dos gentios era ―incontrolável‖, às vezes levando uma sociedade inteira aos juízos de Sodoma e Gomorra (Gn 19), e de Pompéia e Herculano nas encostas do Vesúvio. A ignorância dos gentios produzia uma vida imoral; a revelação divina exige uma vida santa!
O Deus que não tem prazer na morte dos ímpios encontra prazer no Seu povo quando eles mantém os seus corpos ―em santificação e honra‖.
No v. 6 outro assunto importante é tratado: ―Ninguém oprima ou engane a seu irmão em negócio algum‖. O texto original não diz ―negócio algum‖, mas como diz a ARA: ―Nesta matéria, ninguém ofenda, nem defraude a seu irmão‖. Paulo está tratando de um só assunto neste trecho. A tradução de J. N. Darby diz: ―não prosseguindo além dos direitos e ofendendo seu irmão neste assunto‖. Os assuntos do contexto são as relações sexuais e o perigo de ultrapassar os limites na conduta, resultando no pecado de violar os direitos de um irmão. Por exemplo, adultério envolveria a esposa de um irmão e assim violaria os direitos do irmão. Qualquer tipo de prática sexual ilícita está incluída na frase ―nesta matéria‖. Paulo está claramente advertindo que, onde não há controle próprio do corpo, os relacionamentos afetuosos entre os salvos poderiam abrir a porta para a entrada do pecado, que o Senhor mesmo vingaria (v. 6). O escritor aos hebreus advertiu seus leitores judaicos dizendo: ―venerado seja entre todos o matrimônio e o leito sem mácula; porém, aos que se dão à prostituição, e aos adúlteros, Deus os julgará‖ (Hb 13:4). Paulo, aqui em I Ts 4:6, entrega uma advertência semelhante aos leitores gentios. A vontade de Deus para os santos, quer sejam judeus ou gentios, é a sua santificação.
Ele continua:
O Deus que os chamou, quer judeus ou gentios, os chamou à santidade, literalmente ―em santificação‖. Ninguém podia duvidar do Seu propósito. Talvez por estar escrevendo a gentios Paulo não diz: ―e sereis santos, porque eu sou santo‖ (Lv 11:44), como Pedro fez quando escreveu a judeus (I Pe 1:16). A intenção de Deus não era que eles permanecessem no pecado (Rm 6:1). Ele os tinha chamado ―em santificação‖. Eles eram fornicadores, idólatras, adúlteros, efeminados, sodomitas, ladrões, avarentos, bêbados, roubadores, mas agora tinham sido ―lavados … santificados …
justificados‖, agora o ―corpo não é para a prostituição, senão para o Senhor, e o Senhor para o corpo‖ (I Co 6:9-11, 13). Deus os tinha chamado da noite tenebrosa de ―dissoluções‖ para a luz onde um viver santo é praticado (Rm 13:12-14).
O meio pelo qual isso se torna possível na vida do salvo é indicado claramente pelo Senhor Jesus na Sua oração em João 17:17: ―santifica-os na tua verdade; a tua palavra é a verdade‖. O Salmista expressa o mesmo pensamento: ―Com que purificará o jovem o seu caminho? Observando-o conforme a tua palavra‖ (Sl 119:9). O conhecimento da Palavra de Deus e obediência a ela nos guardarão do lamaçal de iniquidade que nos cerca hoje. O apóstolo expressa o mesmo pensamento: ―a palavra de Cristo habite em vós abundantemente, em toda sabedoria …‖ (Cl 3:16).
A mente saturada com a Palavra — e não há alternativa — é a base pela qual podemos purificar-nos ―de toda a imundícia da carne e do espírito, aperfeiçoando a santidade no temor de Deus‖ (II Co 7:1). Em Romanos 6, o apóstolo segue o tema do relacionamento do salvo com o pecado no contexto do nosso batismo. Nos vs. 1-14 ele responde à pergunta que ele fez no v. 1: ―permaneceremos no pecado?‖ No resto do capítulo (vs. 15-23), a pergunta respondida é: ―pecaremos porque não estamos debaixo da lei, mas debaixo da graça?‖ (v. 15). A resposta às duas perguntas é clara — ―De modo nenhum‖. Como pode isso ser efetuado? Na primeira parte do capítulo ele mostra que nosso batismo é uma expressão exterior da nossa morte ao pecado — então não podemos continuar no pecado; no resto do capítulo ele trata do nosso serviço (note as repetidas referências a serviço nos vs. 16-20, 22). A conclusão aqui também é clara: ―Mas agora, libertados do pecado, e feitos servos de Deus, tendes o vosso fruto para santificação, e por fim a vida eterna‖ (Rm 6:22). Servos precisam ser obedientes: ―… sois servos daquele a quem obedeceis‖ (v. 16).
O resto desta parte de Romanos (caps. 6-8) mostra os meios práticos pelos quais a santificação pode ser efetuada. Isto acontece de duas maneiras: negativamente no cap. 7, e positivamente no cap. 8.
O propósito do cap. 7 é mostrar a impossibilidade de santificação baseada em guardar a lei. Não há nada errado com a lei, ela ―… é santa, justa e boa‖ (v. 12) — o problema está conosco; nós não podemos guardá-la! Como então pode a santificação ser efetuada? ―… o que era impossível à lei, visto como estava enferma pela carne, Deus, enviando o seu Filho em semelhança da carne do pecado, pelo pecado condenou o pecado na carne; para que a justiça da lei se cumprisse em nós, que não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito‖ (Rm 8:3-4). É o Espírito de Deus que dá o poder para viver uma vida santificada.
Assim, a santificação prática é obtida pelo conhecimento da Palavra, uma vontade de obedecê-la, um reconhecimento da nossa fraqueza e dependência no Espírito de Deus. É algo que devemos ―seguir‖ (Hb 12:14), sabendo que sem ela ―ninguém verá a Deus‖.
A santificação perfeita e esperada
A santificação do salvo não será completa até à segunda vinda de Cristo. Então a oração do apóstolo será respondida: ―… e o mesmo Deus de paz vos santifique em tudo; e todo o vosso espírito, alma e corpo, sejam plenamente conservados irrepreensíveis para a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo‖ (I Ts 5:23). Naquele momento o salvo será conformado fisicamente, moralmente e espiritualmente a Cristo. ―Amados, agora somos filhos de Deus, e ainda não é manifestado o que havemos de ser, mas sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele; porque assim como é o veremos‖ (I Jo 3:2). O contexto aqui nos diz: ―Ele é justo‖ (2:29); ―Ele é puro‖ (3:3); ―nEle não há pecado‖ (3:5). Um dia tudo isso será verdade do salvo! Justo, puro e sem pecado — as implicações práticas em antecipação daquele dia são claras.
Por William M. Banks, Escócia