Consagração

Consagração
 
 
 
Thomas Wilson, Escócia
 
 
“A seguir-Te aqui, me consagro eu, Constrangido pelo amor.”
(H. e C. nº 311; H. M. W.)
 
Estas palavras foram, muitas vezes, a oração de pessoas sinceras, desde que foram escritas em 1875 como parte do famoso hino de Fanny Crosby. No entanto, a palavra “consagrar” ocorre somente duas vezes no NT da versão AV, e ambas estas referências estão em Hebreus, uma em relação ao próprio Senhor Jesus (“… constituiu o Filho consagrado [ou aperfeiçoado] para sempre”, Hb 7:28), e a outra sobre o caminho que Ele consagrou: “Pelo novo e vivo caminho que ele nos consagrou” (Hb 10:20). Contudo, quando usamos a palavra “consagrar”, geralmente não a usamos no sentido destes versículos. Neste capítulo, vamos pensar principalmente no sentido normal em que usamos a palavra “consagração”.
Consagração no Velho Testamento
No Velho Testamento, os tradutores da versão AV usaram o verbo “consagrar” para traduzir quatro grupos de palavras hebraicas, que juntas nos dão uma boa compreensão do que está envolvido em consagração ao Senhor, algo que o Senhor Jesus espera de cada filho de Deus.
1. Consagração exige santidade
Frequentemente usamos o verbo “consagrar” quase como sinônimo de “santificar, tornar santo”, e de fato os dicionários os dão como sinônimos. Uma das palavras comuns do Velho Testamento para “consagrar” é também traduzida “santificar”. Salienta a necessidade de estar limpo ou de ser santo. É usada de Arão em Êxodo 30:30: “… ungirás a Arão e seus filhos, e os santificarás [consagrarás] para me administrarem o sacerdócio”. O que isto significava para eles é explicado pelo contexto. O v. 29, especificamente, fala dos objetos santos como a arca, a mesa, os altares, e a pia: “assim santificarás estas coisas, para que sejam santíssimas”. Sendo santíssimas elas estariam em condições apropriadas para o lugar santo onde somente o sacerdote santificado podia entrar, ou ao lugar santíssimo onde Jeová habitava entre os querubins. Nestes dois versículos a palavra “santificar” é a mesma palavra hebraica traduzida “consagrar” em outras partes do VT; e o adjetivo “santo” que aparece duas vezes é também do mesmo grupo de palavras. Obviamente, então, Arão e seus filhos deveriam estar limpos, ou santos, como o padrão do santuário exigia. Embora não usando a mesma palavra hebraica, as exigências de Isaías 52:11 são sobre a consagração: “não toqueis coisa imunda … purificai-vos, os que levais os vasos do Senhor”. Aqueles homens, como Arão e seus filhos, deveriam se manter separados de tudo que poderia contaminá-los.
Neste mundo perigoso, o cristão precisa estar cônscio de quanta coisa há que não é santa. Não podemos ficar perto da impureza sem sermos contaminados. A nossa companhia pode nos contaminar, como vemos em II Coríntios 6:17, onde Paulo cita Isaías 52:11. A ordem para cada cristão é ser separado daqueles que contaminam: “por isso saí do meio deles, e apartai-vos, diz o Senhor”. Não é somente no Velho Testamento que Deus diz: “sereis santos, porque eu sou santo” (Lv 11:44; 19:2; 20:7); isto é citado também no Novo Testamento em I Pedro 1:16, “Sede santos, porque eu sou santo”. Deus é o Deus de quem Maria disse: “.. . o Poderoso; e santo é o seu nome” (Lc 1:49).
Nós temos o mais nobre dos motivos para obedecer a este requisito apresentado no Velho e no Novo Testamentos: “sede santos, porque eu sou santo”. Sabemos que a Obra
de Cristo nos santificou: “E por isso também Jesus, para santificar o povo pelo seu próprio sangue, padeceu fora da porta” (Hb 13:12). Quando nosso coração é comovido pelo sofrimento de Cristo para que nós pudéssemos ser santos, nosso amor responde com desejos por santidade. É o amor que nos leva para fora do arraial a Cristo. O amor sabe que haverá desprezo, mas o amor está preparado para pagar o preço para ser santo. A verdadeira consagração é o fruto do amor profundo para com Cristo, que se manifesta em santidade de vida num mundo escarnecedor. A consagração guarda o cristão fora dos prédios mundanos de prazeres abastecidos pelo álcool, e da imoralidade que tão frequentemente acompanha este estilo de vida dissoluto. Mesmo nos nossos dias, a consagração exige santidade, e é somente quando o santo de Deus respira profundamente do ambiente do lugar Santíssimo que ele será santo na sua vida, uma necessidade para todos que querem ser consagrados ao Senhor.
2. Consagração é separação para o Senhor
Um segundo grupo de palavras é usado no Velho Testamento em relação à consagração. Um homem, ou uma mulher, podia fazer um voto voluntário, chamado o voto do Nazireu, para ser separado ao Senhor, de uma maneira especial (Nm 6:2). Eles se absteriam, por um período, de certas coisas que poderiam contaminá-los. Mesmo aproximar-se do cadáver de um parente chegado era proibido. Naquela sociedade era normal beber vinho, mas eles não podiam beber “alguma beberagem de uvas”, nem comer “uvas frescas nem secas … desde os caroços até as cascas” (Nm 6:3-4). Este voto também exigia que deixassem crescer os cabelos (v. 5), para que os outros soubessem que estes não somente eram separados de coisas que talvez pudessem prejudicá-los, como vinho ou a morte, mas também que eram separados para o Senhor. Se, por acaso, o voto fosse quebrado quando, por exemplo, alguém morresse subitamente ao seu lado, também isso seria conhecido pelos outros, porque a cabeça teria de ser rapada e consagrada novamente (Nm 6:9, 11). O nazireado era rigoroso, e geralmente as pessoas somente o podiam manter por pouco tempo. Mas corações devotos tinham esta oportunidade de se separarem para o Senhor.
O Novo Testamento não encoraja este tipo de voto. No período contido em Atos, vemos que embora os judeus abandonassem seus caminhos tradicionais de adoração, algumas práticas somente foram abandonadas lentamente, e o voto era uma delas. De fato, lemos de Paulo “tendo rapado a cabeça em Cencréia, porque tinha voto” (At 18:18), e também dele estar associado com quatro homens que “fizeram voto”, quando entraram no templo “anunciando serem já cumpridos os dias da purificação” (At 21:23-27). Ambas estas passagens parecem descrever o voto do Nazireu, cujo período mínimo era de 30 dias. Todavia, é notável que o Novo Testamento não legisle, nem fala com aprovação sobre votos. Nosso Senhor Jesus fala de alguns que fizeram votos, mas no sentido de condená-los porque seu motivo era somente mostrar sua piedade, enquanto negligenciavam os assuntos mais importantes da lei (Mt 15:4-6; Mc 7:10-13). Demorou alguns anos, talvez, para os cristãos judeus deixarem de fazer votos, mas Deus não desejou, e não deseja hoje, que Seu povo se prenda legalmente a votos. O que Deus deseja é a nossa consagração, ao sermos separados a Ele e assim separados do mundo corrompido ao nosso redor.
Todavia, no tempo de Moisés, o nazireado era “uma expressão sincera e correta da antiga fé hebraica”. Aqueles que faziam este voto, homem ou mulher, deveriam ser respeitados e seu exemplo de separação ao Senhor observado. De fato, Amós lamenta a terrível decadência que existia em Israel nos seus dias. Ele considerava que cada verdadeiro profeta e cada Nazireu era o resultado de uma obra profunda de Deus nas suas almas, para que Ele pudesse produzir neles um exemplo daquilo que O honrava.
Ele registra o que o Senhor tinha falado sobre eles: “E dentre vossos filhos suscitei profetas, e dentre vossos jovens nazireus”. A nação, no entanto, mesmo sabendo que o voto do Nazireu exigia abstinência total de vinho e de bebida forte e também de qualquer coisa relacionada com o fruto da vinha, deliberadamente deu “aos nazireus … vinho a beber, e aos profetas ordenastes, dizendo: Não profetizareis” (Am 2:11-12). O povo se esforçou para destruir o testemunho daqueles que Deus tinha levantado. Aprendemos lições importantes nestas palavras de Amós:
i) Deus mesmo tocava nos corações dos Seus para tomarem voluntariamente o voto do Nazireu (Nm 6:2).
ii) A disciplina evidente na vida do Nazireu teria um efeito nos outros; alguns se oporiam, outros os apoiariam, até ao ponto de pagar o preço exigido do voto — o custo dos sacrifícios — eles fariam “por eles os gastos” (At 21:24).
iii) O voto traria prazer a Deus; seria “ao Senhor” (Nm 6:2).
Os ritos de Números 6 pertencem a uma era que terminou com a morte de Cristo, mas, como já notamos, houve um período de transição durante o qual alguns ainda se apegavam a estes rituais antigos. Não obstante, o Senhor ainda deseja que nós O agrademos com vidas, não temporariamente consagradas a Ele, mas caracterizadas por esta mesma devoção, desde o momento da conversão em diante.
Até Cristo, somente poucos dos grandes homens e mulheres foram Nazireus. A esposa de Manoá e seu filho Sansão (Jz 13:7, 14; 16:17), Samuel (I Sm 1:11) e João Batista (Lc 1:15) eram Nazireus, e portanto separados ao Senhor. Mas, desde Cristo, todos os grandes homens e mulheres são separados ao Senhor. Tendo nos dado a Sua Palavra e o Espírito Santo que habita em nós, o Senhor tem providenciado tudo que é necessário para que as nossas vidas sejam inteiramente consagradas a Ele. Ele não está pedindo uma consagração periódica ou intermitente, e não ficará satisfeito com somente um período de consagração. Ele exige “nossos corações, nossas vidas, nosso tudo”, para o resto da nossa vida. Reconhecemos que poderá haver falhas nas nossas vidas, como poderia acontecer na experiência do Nazireu (Nm 6:9-12), mas há provisão para nossa recuperação, para que as nossas vidas possam ser, mais uma vez, caracterizadas por consagração ao Senhor.
A separação do salvo precisa ser descrita tanto com negativos como positivos. Ele (ou ela) absterá de tudo que estimula o mundo. O uso de álcool e drogas é parte disso, mas o cristão inteligente também perceberá muitos outros estimulantes operando nas vidas das pessoas ao seu redor. A imoralidade total é um vício de muitos, como também a participação no ambiente social em eventos esportivos, cinema e teatro. Muitas outras práticas também estimulam as pessoas mundanas. Estas coisas moldam a vida dos incrédulos e continuamente mudam seus padrões mentais, até que toleram coisas que a Palavra condena e, finalmente, estas coisas são aceitas como normais nas suas vidas. Nenhuma geração precisou ouvir este chamado à separação mais claramente do que a nossa geração presente.
Entretanto, o salvo consagrado saberá que há aspectos positivos também. O Senhor deseja que a consagração seja expressa em pelo menos três maneiras distintas e positivas:
• “Se alguém quiser fazer a vontade dele, pela mesma doutrina conhecerá se ela é de Deus”, João 7:17.
• “Se alguém me ama, guardará a minha palavra”, João 14:23;
• “Se vós estiverdes em mim, e as minhas palavras estiverem em vós, pedireis tudo o que quiserdes, e vos será feito”, João 15:7.
Que grande exemplo este tipo de vida seria para qualquer observador salvo, e como convenceria a geração incrédula! A consagração é a separação para o Senhor e de tudo que O desonra. Requer o exercício da vontade (Jo 7:17); a energia do amor (Jo 14:23), e a eficácia da comunhão contínua com o Próprio Senhor (Jo 15:7). No dia privilegiado em que vivemos, é a expressão sincera e correta da nossa fé. Publicamente, pode começar com o batismo e com associação com o povo do Senhor na comunhão de uma igreja local. A sua realidade interior será demonstrada através de outras evidências externas. Consagração é separação ao Senhor que afeta, não somente o comportamento externo que os outros observam, mas também o mais íntimo do nosso coração. Também traz grande prazer ao coração de Cristo, pois é para Seu específico prazer.
3. Consagração é estar ocupado com a obra do Senhor
A lição franca que aprendemos do terceiro grupo de palavras é que pessoas consagradas nunca são pessoas preguiçosas. Isso é ilustrado claramente em Arão e seus filhos: “… e os consagrarás … para que me administrem o sacerdócio” (Êx 28:41). Esta palavra “consagrarás” literalmente significa “encher as mãos” ou “estar ocupado com”. No caso daqueles sacerdotes, havia tempos quando, ministrando perante o Senhor, suas mãos, literalmente, estariam cheias. O “carneiro das consagrações” (Êx 29:22, 26), literalmente encheria as suas mãos. Mas, num sentido mais completo, sua consagração, e a nossa, deve significar ocupação com o serviço e os interesses do Senhor. Para cada sacerdote, depois de Arão, esta consagração significava estar “cada dia ministrando e oferecendo muitas vezes os mesmos sacrifícios” (Hb 10:11). Também era necessário ter compaixão daqueles que eram “ignorantes” e daqueles que estavam “errados” (Hb 5:2). Pelos estatutos, eles também tinham outras incumbências, como cuidar do candelabro no santo lugar (Êx 27:21; 30:7). Lemos do sumo sacerdote com a estola sendo chamado à presença de Davi para que ele pudesse indagar do Senhor (Êx 28:30; Nm 27:21; I Sm 23:2, 4, 6). Além disso, tinham a responsabilidade de ensinar o povo “todos os estatutos que o Senhor lhes” tinha falado “por meio de Moisés” (Lv 10:11). Assim lemos o que Malaquias escreveu 1.100 anos mais tarde: “Porque os lábios do sacerdote devem guardar o conhecimento” (Ml 2:7). De fato, se em Israel surgisse um caso “difícil demais em juízo” para os cidadãos da terra, eles deveriam ir aos sacerdotes para um julgamento e seguir a sua sentença de juízo (Dt 17:9-11). Os sacerdotes tinham muito que fazer para que o serviço de Jeová continuasse e Seu povo fosse apoiado e guiado, corretamente. Literalmente, com o carneiro da consagração, e metaforicamente com seus variados deveres, suas mãos estavam cheias. Assim, também devem as nossas estar!
Igualmente as mãos dos apóstolos estavam cheias quando eles convocaram a multidão dos discípulos e disseram: “Não é razoável que nós deixemos a palavra de Deus e sirvamos às mesas” (Atos 6:2). Eles não estavam negligenciando a administração da distribuição do sustento às viúvas ligadas à igreja em Jerusalém; antes foi para que pudessem se entregar “à oração e ao ministério da palavra”. Eles sabiam que a oração e o ministério os ocupariam totalmente. Olhamos em tudo que foi conseguido pelos apóstolos naquela geração. Se avaliarmos pelas distâncias que viajaram para alcançar os pecadores perdidos; se avaliarmos pelo número de almas salvas no período curto descrito nos Atos dos Apóstolos; se avaliarmos pelas muitas igrejas estabelecidas; se avaliarmos pelas cartas que escreveram, que compõem o nosso Novo Testamento, chegaremos a uma só conclusão — suas mãos estavam cheias, cheias demais para estarem servindo às mesas.
O exemplo de Atos 6:2 nos dá um modelo que devemos seguir. Observamos que a consagração não somente requererá mãos cheias na obra de Deus, mas que sob a direção
de Deus façamos escolhas apropriadas. Há muitas maneiras em que podemos nos ocupar, mas todos nós não devemos nos ocupar da mesma maneira. I Coríntios 12 ensina que existem muitos tipos de serviço e que nossos dons são diferentes. Devemos trabalhar até cansar naquilo que o Senhor nos deu para fazer, para que Ele não tenha que nos exortar a atentar “para o ministério que recebestes no Senhor, para que o cumpras” (Cl 4:17). Para sermos úteis devemos procurar a direção do Senhor para sabermos o que Ele quer que façamos. Então o nosso trabalho será frutífero.
Timóteo foi descrito por Paulo como alguém que trabalhava na obra de Deus, como ele também (I Co 16:10). Que grande recomendação! Certamente as mãos de Paulo estavam cheias. Ele carregou um tremendo peso de sofrimentos. Em II Coríntios 11, ele lista não somente seus “trabalhos, muito mais”, mas também seus açoites, prisões, chicotadas e privações, muito além dos limites normais de tolerância. E, tendo descrito as suas aflições, ele acrescenta: “Além das coisas exteriores, me oprime cada dia o cuidado de todas as igrejas” (II Co 11:28). Se Timóteo trabalhava como Paulo, suas mãos certamente estariam cheias. Todos nós, quer sejam os mais velhos como Paulo ou os mais novos como Timóteo, devemos ter as mãos cheias porque há muito para se fazer. Sabemos que somente podemos trabalhar “enquanto é dia” (Jo 9:4). Este é nosso tempo de serviço, quando nossas mãos deveriam estar cheias. As mãos de Dorcas estavam cheias e aquelas viúvas que lamentaram a sua morte, estavam vestidas por causa da habilidade e persistência daquelas mãos (At 9:39). As mãos de Maria também estavam cheias de muito serviço para ajudar os servos de Deus como Paulo (Rm 16:6). Os cristãos consagrados sempre têm mãos cheias.
Quando viemos a Cristo para salvação, confessamos:
Nada em minhas mãos eu trago, Somente à Sua cruz me apego.
A. M. Toplady (tradução literal)
Um pecador somente pode vir a Deus com mãos vazias. Ele não ousa trazer o fruto do seu próprio trabalho, como Caim fez. Mas, no momento da salvação, o Senhor nos consagrou a Si Mesmo para que nossas mãos purificadas pudessem estar cheias com o Seu nobre trabalho. Para cada um de nós que o Senhor salvou há “boas obras, as quais Deus preparou para que andássemos nelas” (Ef 2:10). O exemplo perfeito de uma vida assim foi vista no Próprio Cristo, “o qual andou fazendo o bem, e curando a todos os oprimidos do diabo, porque Deus era com ele” (At 10:38). Como eram bondosas aquelas mãos, e quão cheias! Há trabalho para nossas mãos fazerem. Ouvimos a exortação que foi primeiramente ouvida por Saul: “Faze o que achar a tua mão” (I Sm 10:7). A consagração exige que as nossas mãos estejam cheias.
4. Consagração é dar a Deus com abnegação
O grupo final de palavras do Velho Testamento que vamos considerar trata com coisas reais, como um campo ou animal sendo consagrado ao Senhor. Neste quarto grupo, a palavra “consagrar” significa “excluir”, e assim expressa a entrega total das coisas consagradas a Deus “de uma maneira irrevogável e permanente”, que excluía as coisas consagradas “do seu uso e abuso por parte dos homens”. Assim a palavra, como usada neste grupo, enfatiza os direitos exclusivos de Deus sobre nossos bens. Em Levítico 27 achamos as leis governando um campo ou animal consagrado a Deus. Este campo ou animal se tornava propriedade do Senhor. Miquéias 4:13 também usa a linguagem de consagração acerca dos espólios no dia futuro, quando o Senhor vencerá seus inimigos e estabelecerá o Seu reino na Terra. Todos os espólios serão consagrados ao “Senhor de toda a terra”. Naquele dia ninguém considerará os espólios como seus, para serem usados para seu ganho ou prazer particular. Da mesma maneira hoje em dia,
não devemos considerar o que temos como nosso. Tudo que somos e temos deve ser consagrado ao Senhor.
No momento da conversão várias coisas aconteceram simultaneamente. Naquele momento recebemos o direito de nos alegrar porque nossos nomes foram escritos no céu (Lc 10:20; Ap 20:15; 21:27); podíamos desfrutar da adoção como filhos (Ef 1:5); fomos selados com o Espírito Santo da promessa (Ef 1:3); passamos a ser herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo (Rm 8:17), e recebemos muitas outras bênçãos. Naquele mesmo momento também é verdade que cessamos de pertencer a nós mesmos, porque fomos “comprados por preço” (I Co 6:19-20). Sabemos que nosso nome nunca será tirado do livro da vida, e que nunca podemos anular a nossa adoção nem remover o selo do Espírito Santo, nem nos deserdar a nós mesmos. Também, nunca podemos desfazer a transação que nos fez irrevogavelmente a possessão de Deus e do Seu Cristo. Tudo que somos e tudo que temos agora pertence a Outro, que nunca cederá os Seus direitos. No momento da nossa conversão tudo foi consagrado a Deus. No contexto de I Coríntios 6, isto significa que o nosso corpo, que poderia ser contaminado pela fornicação, agora pertence a Deus como o templo do Espírito Santo. Neste contexto, os direitos exclusivos que o Senhor adquiriu através da redenção, operam de tal modo que há práticas nas quais o santo não ousa se ocupar. Sua consagração reconhece a necessidade de glorificar o Senhor no seu corpo. Mas a consagração reconhece que estes direitos vão além do uso do corpo.
Quando os apóstolos testemunhavam da ressurreição com grande poder, e em todos eles havia abundante graça, lemos que “ninguém dizia que coisa alguma do que possuía era sua própria, mas todas as coisas lhes eram comuns … não havia, pois, entre eles necessitado algum” (At 4:31-35). A sua distribuição, para suprir cada necessidade dos pobres entre eles, foi uma evidência de que reconheceram que seus bens materiais eram, de fato, confiados a eles pelo seu Dono. Eles reconheceram que aquelas coisas eram consagradas a Ele e, como despenseiros das Suas possessões, eles deveriam agir com sabedoria e para a Sua glória, ao distribuir a provisão celestial aos necessitados. De fato, quando dois deles agiram com hipocrisia para realçar a sua reputação entres os que foram consagrados a Deus, Pedro expôs a sua mentira contra o Espírito Santo e os lembrou: “guardando-a não ficava para ti? E, vendida, não estava em teu poder?” (At 5:1-4). Pedro não os tratou de acordo com a sua profissão. Eles professaram reconhecer os direitos do Senhor sobre tudo que anteriormente consideravam seu e que usavam para o seu próprio bem. A sua ação foi uma negação da consagração exclusiva que professavam. Eles não podiam dizer com verdade:
Toma minha prata e meu ouro, Nem um centavo irei negar.
F. R. Havergal (tradução literal)
Deliberadamente, como parte do seu planejado acordo, Ananias e Safira “retiveram parte do preço”. Não reconheceram que tudo que anteriormente consideravam seu agora era consagrado exclusivamente ao Senhor. Mas nós, com razão, cantamos sobre nossa consagração e nosso compromisso de nada reter. O filho pródigo, quando estava saindo da casa do pai, disse: “dá-me”. A alma redimida, tendo voltado do país distante, observa que o Pai ainda dá, mas em resposta é capaz de dizer, como Naamã: “… peço-te que aceites uma bênção do teu servo” (II Rs 5:15).
A passagem em Miquéias 4:13 prevê os direitos do Senhor Jesus se estendendo além desta dispensação. Revela o que acontecerá no dia em que Ele se levantar para julgar o mundo, um acontecimento que não acontecerá até depois do Arrebatamento da Sua Igreja e da Grande Tribulação, quando Ele derramará a Sua ira sobre esta Terra.
Miquéias registra a gloriosa promessa a Israel sobre o poder que aquela nação exercerá depois da vinda do Senhor em poder. Durante a Grande Tribulação o mundo vai pensar que a exterminação da nação, que tem sido tão procurada por muitos, é inevitável. Mas aquela nação esmiuçará os seus inimigos, diz Miquéias. Israel será como um touro selvagem com chifres de ferro e unhas de bronze, para que os muitos que têm esmiuçado a nação sejam esmiuçados por ela. O que acontecerá com os espólios daquela vitória?
Quando Jericó caiu houve muito espólio. Tudo que havia na cidade seria “consagrados ao Senhor” (Js 6:19), e ninguém deveria levar nada dela (Js 6:17; 7:1, 11-26). Mas Acã pereceu por causa da sua desobediência à ordem do Senhor. Esta desobediência revelou que ele não levou em conta o direito do Senhor da terra de fazer o que Ele queria com Jericó e a sua riqueza.
Quando, no dia mencionado por Miquéias, o Senhor exercer Seus direitos exclusivos em Israel, Ele agirá como “o Senhor de toda a terra” (Mq 4:13). “Desde que houve nação” (Dn 12:1), os grandes têm acumulado para si riquezas, a maior parte da qual é dedicada à glória dos seus líderes.
Estes andam pelos seus palácios orgulhosamente, gloriando-se em tudo que têm construído com as riquezas das nações que saquearam. Eles assumiram o direito de adquirir riquezas e demonstrar seu esplendor com ostentação, nunca pensando que o “Senhor de toda a terra” talvez desaprove. Naquele dia, o Universo admirado aprenderá que Deus de fato desaprova. Também aprenderão que, no Calvário, o Senhor pagou o preço, não somente da nossa redenção, mas para adquirir o mundo, como Ele ensinou na Sua parábola do tesouro escondido no campo. Como Ele tem direito sobre estas nossas almas redimidas, direito esse que confessamos na nossa consagração, assim também Ele tem direito sobre este mundo, e Ele aparecerá para exercer estes direitos exclusivos depois do Arrebatamento. Naquele tempo Ele reivindicará das nações ímpias “seu ganho … e seu sustento”.
Zacarias também testifica deste grande acontecimento, enfatizando este “ganho e sustento” dos quais Miquéias fala. Ele diz: “E também Judá pelejará em Jerusalém, e as riquezas de todos os gentios serão ajuntadas ao redor, ouro e prata e roupas em grande abundância” (Zc 14:14). Tudo que pertence exclusivamente ao Senhor será arrancado daquelas mãos gananciosas. Uma resistência como esta não deve ser vista em nós. Devemos reconhecer a grandeza da vitória do Senhor e alegremente ceder a Ele o que Ele tem colocado em nossas mãos.
Nada que tenho chamo meu, Guardo tudo para Quem me deu: Minha vida e força, e meu coração, Tudo são dEle, e sempre serão.
J. G. Small
Sabemos que consagração significa entregar a Deus o que Ele tem confiado a nós. Significa recusar aprovar a ilusão mundana de que é justo ou correto satisfazer nossas inclinações egoístas. Significa descobrir o gozo de dar, aprendendo que “mais bem aventurada coisa é dar do que receber” (At 20:35).
Consagração no Novo Testamento
Os quatro grupos de palavras do Velho Testamento que já consideramos nos ajudam muito no nosso entendimento de alguns dos aspectos incluídos no que chamamos de “consagração”. Vamos agora considerar as duas referências no Novo Testamento onde a palavra “consagrar” ocorre na versão AV.
5. O Filho perfeito [consagrado] para sempre
Esta frase importante em Hebreus 7:28 não está descrevendo uma vida consagrada à vontade e propósito de Deus no sentido em que temos visto até aqui. Sem dúvida, somente o Senhor Jesus cumpriu absolutamente tudo que Deus procura numa pessoa consagrada a Ele. Ele cumpriu todas as exigências da santidade. Ele era o Santo de Deus que andou por este mundo, sem ser contaminado pelo seu pecado. Ele estava totalmente separado de tudo que teria sido ofensivo ao Seu Deus, e firmemente separado para o Seu Deus. Nenhum Nazireu poderia ter mantido a devoção de vida que Ele manteve. Suas mãos estavam sempre cheias com o serviço de Deus; de fato, Ele completou a obra que Seu Pai lhe dera para fazer (Jo 17:4). Ele deu tudo prontamente, nada retendo em vida ou na morte, pois Ele “derramou a sua alma na morte” (Is 53:12). Mas não julgamos que a frase em Hebreus 7:28 esteja refletindo estes aspectos daquela vida.
O verbo “aperfeiçoar” (teleeio, no grego) ocorre na carta aos Hebreus em 2:10 (VB); 5:9 (VB); 7:19 (traduzido “perfeito”), 29; 9:9; 10:1, 14; 11:40; o adjetivo cognato ocorre em 5:14 e 9:11, e o substantivo em 6:1. Três destas ocorrências estão relacionadas ao Senhor Jesus, pessoalmente:
“Aperfeiçoasse pelos sofrimentos ao autor da salvação deles” (2:10, VB);
“Tendo sido aperfeiçoado, tornou-se autor da salvação eterna” (5:9, VB);
“… o Filho perfeito para sempre” (7:28).
Nestes versículos a nossa atenção é dirigida a uma Pessoa gloriosa, por meio de palavras infinitamente profundas. Este é “o príncipe da nossa salvação”, “o autor [ou causa] da eterna salvação”, e “o Filho”. O assunto de Cristo sendo aperfeiçoado está em consideração. O cristão sabe que estes versículos não estão sugerindo que houve qualquer imperfeição, moral ou espiritual, em Cristo. Os versículos comentam as experiências do Senhor como Homem. É evidente, em cada um dos três versículos, que o Senhor não está ativamente criando as circunstâncias em que Ele está envolvido. Em cada caso a Pessoa em atividade é o Seu Deus: Ele está tornando perfeito, ou aperfeiçoando. Vemos também a ênfase em sofrimentos em cada uma das referências. Os homens tiveram sua parte nestes sofrimentos do Salvador, mas isto não é mencionado nestes versículos. Vemos que o Senhor conheceria sofrimentos antes do Calvário, no Calvário e, tendo sofrido ali, Seu currículo de sofrimentos terminou. Que visão panorâmica da vida, morte e exaltação de Cristo! O que estes versículos nos ensinam é a importância de gloriar-nos em nosso Deus, que trouxe o Seu plano até a sua perfeita consumação em Cristo. Este é o sentido do verbo “aperfeiçoar”.
O escritor se regozija em observar que a palavra do juramento estabeleceu o Filho como sacerdote. Isto aconteceu depois do término dos Seus sofrimentos e da realização da Sua oferta, uma única vez, pelo pecado do Seu povo (Hb 7:27-28). A palavra do juramento não constituiu Cristo como Filho, mas fez o Filho sacerdote para servir “com o zelo perfeito da afeição e gozo filial”. O v. 28 não identifica quem é beneficiado pelo Seu sacerdócio, mas o próximo versículo esclarece quem é: “… nós temos um sumo sacerdote …” (Hb 8:1). O amor se regozija nesta Pessoa, “o sumo sacerdote aperfeiçoado”, a quem Deus tem apresentado “para confortar e sustentar o coração contrito … Ele é apresentado pelo Espírito à nossa fé para o estabelecimento da nossa confiança e a permanência do nosso gozo nEle”.
Quando refletimos em consagração, aprendemos no Filho que Deus está operando onde Seu prazer está garantido. Ele tem preparado um caminho para nós, um que pode significar sofrimento. Temos de completar cada passo neste caminho antes de sermos convidados a dar mais um passo no caminho da consagração. Enquanto assim fazemos,
devemos notar que cada passo pode trazer bênção a outros. Olhando para Jesus, vemos como Deus é capaz de realizar isto.
6. O caminho consagrado
A outra ocorrência da palavra “consagrar” no Novo Testamento está em Hebreus 10:20: “Pelo novo e vivo caminho que ele nos consagrou, pelo véu, isto é pela sua carne”. A palavra traduzida aqui “consagrou” é traduzida “dedicou” na versão RV. De fato, o mesmo verbo grego é traduzido “dedicou” em Hebreus 9:18. Obviamente este verbo não nos ajuda, diretamente, a compreender o que a Bíblia ensina sobre consagração. Entretanto, sem este caminho aberto à presença imediata de Deus, nós não poderíamos entrar na presença de Deus para adorar, uma parte importante do serviço de cada coração consagrado. O novo caminho, pela morte de Cristo, nos encoraja a nos aproximarmos de Deus com confiança tranquila, sabendo que a obra de Cristo abriu aquele caminho “para nós” e nos deu a posição que precisamos: “a inteira certeza de fé … tendo os corações purificados da má consciência, e o corpo lavado com água limpa” (Hb 10:22). Estes privilégios que pertencem a cada pessoa salva eram o desejo, não cumprido, de corações sinceros desde Moisés até Cristo. Nosso gozo neles é um indicador da condição da nossa alma. Quem é consagrado ao Senhor conhecerá muito da Sua presença. Terá muita comunhão com Cristo e terá prazer em louvar Àquele que deu aos Seus a oportunidade de viver “no tempo que vos resta na carne, não … mais segundo as concupiscências dos homens, mas segundo a vontade de Deus” (I Pe 4:2).
Conclusão
A consagração realmente começou com Deus: era o desejo do Seu coração ter um povo capaz de ter comunhão com Ele. Foi a obra de Cristo que nos comprou para Deus, para que pudéssemos ser um povo peculiar, um povo para Seu exclusivo prazer. Como temos observado, somos consagrados à vontade de Deus no momento da conversão. Mas no sentido prático, seus efeitos são vistos nas nossas vidas somente quando fazemos o que fizeram as igrejas da Macedônia — nos damos a nós mesmos ao Senhor (II Co 8:5). Somente quando nos ocupamos em serviço santo, ativo e abnegado ao Senhor, é que poderemos verdadeiramente cantar as palavras de Fanny Crosby:
“A seguir-Te aqui, me consagro eu, Constrangido pelo amor.”
(H. e C. nº 311; H. M. W.)

 

 

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