Propiciação

Propiciação
 
 
 
John M. Riddle
 
 
Leia Lc 18:9-14; Rm 3:9-26; Hb 2:17-18; I Jo 2:1-2; 4:9-10.
 
Na Sua parábola sobre os dois homens orando no templo (Lc 18:9-14) o Senhor Jesus falou o seguinte: ―O publicano, porém, estando em pé, de longe, nem ainda queria levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: Ó Deus tem misericórdia de mim, pecador!‖ Ao contrário do fariseu, que pertencia a uma classe ―que confiava em si mesmo que era justo‖, o publicano ―desceu justificado para sua casa‖.
Embora a grande doutrina bíblica da justificação pela fé tenha sido tratada no cap. 4 deste livro, e nenhum comentário detalhado seja necessário, a parábola do Senhor enfatiza a base da justificação. O publicano, que ultrapassou muito o fariseu em inteligência espiritual, estava convencido que a bênção que ele procurava, e que encontrou, dependia de sangue derramado. Vemos isto nas suas palavras: ―Ó Deus, tem misericórdia de mim pecador‖, onde a palavra traduzida ―misericórdia‖ (hilaskomai) significa ―ser propício‖ (W. E. Vine), e ocorre também em Hebreus 2:17: ―para expiar os pecados do povo‖. O fato do Senhor Jesus Cristo, como ―misericordioso e fiel sacerdote naquilo que é de Deus‖, incumbir-Se deste trabalho, claramente se refere ao Dia de Expiação, quando o sangue ―do bode da expiação, que será pelo povo‖, era aspergido ―sobre o propiciatório, e perante a face do propiciatório‖ (Lv 16:15). Como C. I. Scofield comenta: ―o publicano, como um judeu instruído, está pensando, não meramente na misericórdia, mas no sangue aspergido sobre o propiciatório … Sua oração poderia ser parafraseada: ‗Seja para comigo como Tu és quando olhas para o sangue expiador‘. A Bíblia não conhece perdão Divino sem um sacrifício‖.
Como o publicano, nós compreendemos que nunca poderíamos esperar gozar de uma sequer das bênçãos de Deus a menos que as exigências da Sua justiça fossem plenamente satisfeitas. Assim cantamos:
O sangue de Cristo, Teu Cordeiro imaculado, É, ó Deus, minha única confiança; Nada mais meu pecado poderia expiar; Em mim nenhuma virtude consigo achar Que poderia trazer à Tua presença.
W. S. W. Pond (tradução literal)
O Oxford Pocket Dictionary (―Dicionário de Bolso Oxford‖) define ―propiciação‖ como: ―aplacar; um presente ou ato feito para ganhar o favor ou a tolerância de outro‖. Conforme esta definição, o favor ou a tolerância tinha de ser conquistada. No Velho Testamento, Jacó disse: ―Eu o [Esaú] aplacarei com o presente‖ (Gn 32:20). A idéia de aplacar é ilustrada também em Provérbios 21:14: ―O presente dado em segredo aplaca a ira, e a dádiva no regaço põe fim à maior indignação‖. Mas, embora o uso normal da palavra ―propiciar‖, no grego, significa conciliar ou aplacar, este não é seu uso no Novo Testamento. A idéia pagã de propiciação era que os deuses irados precisavam ser aplacados antes de concederem algum favor aos seus devotos. O ensino da Bíblia é diferente: o amor de Deus para com os homens pecadores providencia o próprio sacrifício, por meio do qual seus pecados podem ser removidos com justiça: ―Nisto está o amor, não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou a nós, e enviou seu Filho para propiciação pelos nossos pecados‖ (I Jo 4:10). Propiciação não significa que a ira de Deus foi trocada por uma disposição favorável para conosco, por causa da morte de Seu Filho no Calvário, mas significa que Seu amor por nós providenciou o sacrifício sobre o qual a nossa maior bênção pudesse ser assegurada.
A morte do Senhor Jesus Cristo como ―a propiciação pelo nosso pecado‖ é o alicerce da nossa salvação. O Salmista disse: ―Se forem destruídos os fundamentos, que poderá fazer o justo?‖ (Sl 11:3), e os justos podem responder: ―Eu sei que tudo quanto Deus faz durará eternamente; nada se lhe deve acrescentar e nada se lhe deve tirar‖ (Ec 3:14).
Com isto em mente, é muito importante observar que as passagens do Novo Testamento que falam de propiciação, fazem referência ao Dia de Expiação, mas há uma grande diferença entre expiação e propiciação. ―Expiação‖ não é uma palavra do Novo Testamento, e não é um assunto do Novo Testamento. É essencialmente uma palavra do Velho Testamento, pois:
i) significa ―cobrir‖, e
ii) exigia repetição.
i) Pensando no significado de ―cobrir‖, devemos lembrar que em vista da morte de Cristo, Deus passou por cima dos pecados do período do Velho Testamento: ―Ao qual Deus propôs para propiciação pela fé no seu sangue, para demonstrar a sua justiça pela remissão dos pecados dantes cometidos, sob a paciência de Deus‖ (Rm 3:25). O comentário de J. N. Darby aqui nos ajuda: ―Deus passou por cima e não julgou os pecados dos crentes do Velho Testamento‖. Contudo, aqueles pecados precisam ser julgados, e por isto o valor da morte de Cristo abrangeu tanto o passado como o futuro. No Velho Testamento, Deus ―passou pelo‖ pecado, tendo em vista a morte futura do Seu Filho. Ele agora julgou aqueles pecados exatamente da mesma maneira como julgou os pecados de cada crente, hoje. Portanto, estritamente falando, não é apropriado falar da ―morte expiatória de Cristo‖. As palavras usadas em alguns hinos podem nos levar a pensar de maneira errada neste ponto, mas, em sua defesa, temos de reconhecer que muitos dos escritores destes hinos usam expressões como ―a única expiação‖ e ―a completa expiação‖.
ii) Pensando agora na repetição da expiação, necessária no Velho Testamento, o Novo Testamento nos lembra que, ―nesses sacrifícios, porém, cada ano se faz comemoração dos pecados‖ (Hb 10:3), mas agora ―uma só oblação aperfeiçoou para sempre os que são santificados‖ (Hb 10:14). Deus pode declarar: ―jamais me lembrarei de seus pecados e de suas iniquidades‖ (Hb 10:17). Falando da morte de Cristo, lemos: ―… nem também para a si mesmo se oferecer muitas vezes, como o sumo sacerdote cada ano [no Dia da Expiação] entra no santuário com sangue alheio; de outra maneira, necessário lhe fora padecer muitas vezes desde a fundação do mundo. Mas agora na consumação dos séculos uma vez se manifestou, para aniquilar o pecado pelo sacrifício de si mesmo‖ (Hb 9:25-26).
No Novo Testamento, o assunto da propiciação é apresentado de várias maneiras complementares. A palavra ocorre seis vezes no texto grego original (Lc 18:13; Rm 3:25; Hb 2:17; Hb 9:5; I Jo 2:2; I Jo 4:10) e seria útil considerar estas passagens na seguinte ordem cronológica, começando com a fonte da propiciação e concluindo com as bênçãos conseguidas por meio da propiciação:
i) propiciação e o amor de Deus em Cristo;
ii) propiciação e o sangue de Cristo;
iii) propiciação e fé em Cristo;
iv) propiciação e o sacerdócio de Cristo;
v) propiciação e a advocacia de Cristo.
Robert McClurkin chama nossa atenção ao ―pano de fundo nas três epístolas onde a palavra ‗propiciação‘ é encontrada — Romanos, Hebreus e I João. Três grandes verdades são expostas nestes livros: justificação, santificação e o relacionamento
espiritual na família de Deus. Em Romanos a propiciação possibilita a Deus justificar, e a Cristo Se tornar Salvador. Em Hebreus, a propiciação possibilita a Deus santificar, e a Cristo Se tornar Sacerdote. Em I João, a propiciação possibilita a Deus se tornar Pai, e a Cristo Se tornar Advogado para manter o prazer e a alegria daquele relacionamento. Em Romanos, é o aspecto da oferta pelo pecado que é destacado na propiciação. Em Hebreus, é o aspecto da oferta queimada, e em I João é o aspecto da oferta pacífica, reconciliando Deus num relacionamento familiar, com toda a inimizade destruída‖.
A propiciação e o amor de Deus em Cristo
―Nisto se manifesta o amor de Deus para conosco; que Deus enviou seu Filho unigênito ao mundo, para que por ele vivamos. Nisto está o amor, não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou a nós, e enviou seu Filho para propiciação pelos nossos pecados‖ (I Jo 4:9-10).
O Senhor Jesus ―Se manifestou para tirar os nossos pecados‖ (3:5); ―se manifestou; para desfazer as obras do diabo‖ (3:8); e ―se manifesta … para que por ele vivamos‖ (4:9). Porque ―o amor é de Deus‖ (4:7), e ―Deus é amor‖ (4:8), cada bênção que gozamos tem sua fonte no amor de Deus para conosco. Nunca cansamos de repetir as palavras preciosas: ―Porque Deus amou o mundo de tal maneira, que deu o seu Filho unigênito‖ (Jo 3:16). O amor divino tomou a iniciativa ao realizar a nossa salvação, e vale a pena destacar que isto se torna claro bem no início da Bíblia: ―E chamou o Senhor Deus a Adão, e disse-lhe: Onde estás?‖ (Gn 3:9). Deus não estava procurando informações, mas queria ensinar a Adão que o pecado tinha destruído a sua comunhão e aberto um grande abismo entre eles. A lição é clara: o reconhecimento da alienação de Deus é o primeiro passo na salvação. O amor que buscou Adão, caído no Éden, finalmente trouxe o Salvador do Céu. Ele veio para ―buscar e salvar o perdido‖ (Lc 19:10), e para que Ele pudesse efetuar a salvação dos perdidos Ele Se tornou ―a propiciação pelos nossos pecados‖.
Neste contexto, devemos notar três assuntos importantes. Em primeiro lugar, o amor de Deus foi ―manifestado‖. Seu amor não é somente teórico, não é uma teologia abstrata, não é somente uma idéia emocional. O Seu amor foi demonstrado através da história. É um fato: ―Cristo morreu pelos nossos pecados segundo as Escrituras; e … foi sepultado e … ressuscitou ao terceiro dia segundo as Escrituras; e … foi visto …‖ (I Co 15:3-5). A salvação é baseada em fatos bem confirmados e autenticados. Em segundo lugar, o amor de Deus foi manifestado no ―Seu Filho unigênito‖. Esta é uma expressão da mais profunda afeição, como podemos provar de Hebreus 11:17: ―… aquele que recebera as promessas ofereceu o seu unigênito‖. Abraão tinha outros filhos, mas somente Isaque é chamado ―seu filho unigênito‖, e foi dele que Deus disse: ―Toma agora o teu filho, o teu único filho, Isaque, a quem amas …‖ (Gn 22:2). O amor de Deus foi demonstrado na morte do próprio Filho a quem Ele amava infinita e eternamente. Em terceiro lugar, o Senhor Jesus não Se tornou o Filho de Deus pela encarnação, Ele foi enviado como Filho.
Só pensar que Deus nos teria amado é muito maravilhoso. Mas pensar que Seu amor para conosco foi manifestado na morte do Seu Amado Filho, nos faz exclamar: ―Tal conhecimento é maravilhoso demais para mim; elevado é, não o posso atingir‖ (Sl 139:6, VB). Até mesmo isto é excedido quando lemos: ―Ele nos amou a nós, e enviou seu Filho para propiciação pelos nossos pecados‖. A palavra ―propiciação‖, aqui, é um substantivo (hilasmos) e se refere ao sacrifício do Senhor Jesus. Ele é a propiciação, significando que ―Ele Mesmo, através do sacrifício expiatório da Sua morte, é a maneira pessoal pela qual Deus mostra misericórdia ao pecador que crê em Cristo como Aquele assim providenciado‖ (W. E. Vine). Como a propiciação, Ele enfrentou toda a ira de
Deus contra o nosso pecado. Tudo isto, por causa do amor de Deus para conosco, e isso nos faz cantar:
Tão perdidos e sem esperança nós, pecadores, teríamos ficado, Se Ele não nos tivesse amado até nos purificar do nosso pecado!
A. T. Pierson
Não podemos deixar este aspecto da propiciação sem destacar que a morte do Senhor Jesus desta maneira não foi somente ―a grande expressão do amor de Deus para com o homem‖; mas é também ―a razão pela qual os salvos devem amar uns aos outros‖ (W. E. Vine). Vemos isso como uma exortação: ―amemo-nos uns aos outros‖ (I Jo 4:7); como uma obrigação: ―nós devemos amar uns aos outros‖ (I Jo 4:11), e como um mandamento: ―E dele temos este mandamento: que quem ama a Deus, ame também a seu irmão‖ (I Jo 4:21). Visto que o amor de Deus é real e tangível, nosso amor uns para com os outros deve ser ―por obra e em verdade‖ (I Jo 3:18).
A propiciação e o sangue de Cristo
―Mas agora se manifestou sem a lei a justiça de Deus, tendo o testemunho da lei e dos profetas; isto é, a justiça de Deus pela fé em Jesus Cristo para todos e sobre todos os que crêem … sendo justificados gratuitamente pela sua graça, pela redenção que há em Cristo Jesus. Ao qual Deus propôs para propiciação pela fé no seu sangue, para demonstrar a sua justiça pela remissão dos pecados dantes cometidos, sob a paciência de Deus; para demonstração da sua justiça neste tempo presente, para que ele seja justo e justificador daquele que tem fé em Jesus‖ (Rm 3:21-26).
Se em I João 4 aprendemos que a propiciação tem sua origem no amor de Deus, aqui em Romanos 3 aprendemos que a propiciação é demonstrada na presença de Deus, pelo sangue de Cristo. Isso é evidente pelo fato que neste caso a palavra ―propiciação‖ (hilasterion) fala do propiciatório que cobria a arca da aliança. A mesma palavra ocorre em Hebreus 9:5: ―E sobre a arca os querubins da glória, que faziam sombra no propiciatório‖, e, segundo W. E. Vine, é também usada frequentemente do propiciatório na Versão Septuaginta do Velho Testamento. Devemos lembrar que o propiciatório não era o lugar exato onde a expiação de pecado era feita. Isso era feito no altar de bronze (Lv 16:9), mas o sangue da vitima era aspergido sobre, e perante, o propiciatório para demonstrar que a propiciação fora completa, assim prefigurando a apresentação da Obra completa de Cristo na presença de Deus, pois ―nem por sangue de bodes e bezerros, mas por seu próprio sangue, entrou uma vez no santuário, havendo efetuado uma eterna redenção‖ (Hb 9:12).
Não é apenas no sentido literal e físico que encontramos referências ao sangue. O sangue representa a vida da vítima. O sangue de Cristo foi derramado por causa do juízo Divino. Como W. E. Vine destaca, ―por metonímia, o ‗sangue‘ às vezes é usado significando ‗morte‘; visto que a vida está no sangue (Lv 17:11), quando o sangue é derramado, a vida termina‖. O princípio fundamental pelo qual Deus trata os pecadores é expresso nas palavras: ―sem o derramamento de sangue [isto é, sem morte] não há remissão‖ (Hb 9:22).
Três grandes palavras bíblicas aparecem em Romanos 3:24-25: ―… sendo justificado gratuitamente, pela sua graça, pela redenção que há em Cristo Jesus, ao qual Deus propôs para propiciação.‖ Se a redenção enfatiza o efeito da obra de Cristo para com pecadores, então a propiciação enfatiza o efeito da obra de Cristo para com um Deus justo e santo. O pecado tem um efeito duplo; em primeiro lugar desonra a Deus. ―O pecado afrontou a Sua santidade, insultou a Sua majestade, e desafiou o Seu governo justo‖ (W. R. Newell). Em segundo lugar, destrói o pecador. As exigências de Deus precisam ser satisfeitas antes que pecadores possam ser libertos da culpa, e a morte do
Senhor Jesus tornou isto possível. Como W. R. Newell observa: ―Devemos aprender que a cruz não somente traz bênçãos eternas a nós, mas em primeiro lugar glorifica a Deus!‖ Somos redimidos somente porque Deus foi propiciado e, como notamos acima, Romanos 3 enfatiza o lugar onde a propiciação é manifestada.
É de suma importância lembrar que no Dia da Expiação, foi o sangue do bode ―sobre o qual cair a sorte pelo Senhor‖ (Lv 16:9) que tornou o propiciatório eficaz. O sangue não foi aspergido sobre o povo, foi todo aspergido na presença de Deus. Diferentemente dos outros sacrifícios pelo pecado, neste sacrifício o pecado pessoal do ofertante não era imputado à vítima. É por isto que é chamado ―o bode sobre o qual cair a sorte pelo Senhor”. Este sacrifício não exigia fé para torná-lo eficaz. Não era aplicado sobre qualquer homem, nem mesmo o sumo sacerdote. O sangue do bode morto testificava que a morte tinha acontecido e que as exigências de Deus contra o pecado tinham sido plenamente satisfeitas. Deus e o homem só podiam se encontrar no propiciatório quando este tivesse sido aspergido com sangue derramado. Caso contrário, significava morte instantânea a quem quer que se atrevesse a aproximar. Contudo, Deus tinha dito: ―E ali virei a ti, e falarei contigo de cima do propiciatório‖ (Êx 25:22), fazendo-nos lembrar que Deus, e somente Ele, que conhecia as exigências da Sua própria justiça, as tinha satisfeito através da morte do Seu Filho.
O Senhor Jesus se tornou o verdadeiro ―propiciatório‖, não somente pela Sua encarnação, nem somente pela Sua vida, mas pela Sua morte. Assim lemos: ―Ao qual Deus propôs para [ser] propiciação … no seu sangue‖ (Rm 3:25). Pelo Seu sangue derramado Ele Se tornou o lugar de encontro entre Deus e o homem. Esta provisão é ilimitada. Ninguém é excluído do benefício. ―Ele Se deu a si mesmo em preço de redenção por todos” — quer aproveitem disto, quer não. Deus está numa posição para salvar todos os homens. ―E Ele é a propiciação [hilasmos] pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo‖ (I Jo 2:2).
Temos que enfatizar novamente que a morte do Senhor Jesus Cristo é a única base sobre a qual Deus sempre tratou com o pecado humano. Em Romanos 3:25 Paulo apresenta a posição dos homens e mulheres antes da Sua morte, e no v. 26 ele apresenta a posição dos homens e mulheres depois da Sua morte.
i) A morte do Senhor Jesus declara a ―Sua justiça pela remissão [passar por cima] dos pecados dantes cometidos, sob a paciência de Deus‖ (Rm 3:25). Mas isto não significou que Deus tenha ―esquecido ou diminuído a Sua ira contra aquele pecado‖ (W. R. Newell). Aqueles pecados precisam ser castigados, mas Deus reteve o castigo naquele tempo, e este foi plenamente satisfeito pelo Senhor Jesus. Deus agora ―demonstra‖ (esclarece) a base sobre a qual Ele tinha retido o juízo, e demonstra que Ele foi perfeitamente justo em ―deixar impunes os pecados anteriormente cometidos‖ (ARA). Obviamente, o perdão gozado nos tempos do Velho Testamento não era baseado nos sacrifícios de animais: ―Porque é impossível que o sangue dos touros e dos bodes tire os pecados … sacrifício e ofertas não quiseste, nem te agradaram‖ (Hb 10:4-8). Os sacrifícios do Velho Testamento, incluindo os sacrifícios do Dia de Expiação, não tinham valor intrínseco, mas tiveram um valor exterior, em que pelo sacrifício exigido por Deus, as pessoas se colocavam numa posição onde poderiam ser beneficiadas pela obra futura do Senhor Jesus Cristo.
ii) A morte do Senhor Jesus Cristo declara a ―Sua justiça, neste tempo presente, para que ele seja justo e justificador daquele que tem fé em Jesus‖ (Rm 3:26). Claramente, então, os pecados cometidos antes da cruz, e os pecados cometidos depois da cruz, foram tratados na mesmíssima base: a morte do Senhor Jesus no Calvário. A Sua morte permite a Deus tratar a questão do pecado com
justiça. Sem a morte de Cristo, a justificação teria sido injusta e impossível. Mas, por intermédio da morte do Senhor Jesus, ―Deus é [a] justo, e [b] o justificador daquele que tem fé em Jesus‖. A fé no Senhor Jesus permite que Deus, por causa do sangue derramado do Seu amado Filho, declare justo o pecador culpado. Diferente dos tribunais humanos de hoje, onde às vezes há falhas e alterações, esta declaração nunca pode ser desfeita. Deus é ―o Juiz de toda a terra‖ e Ele Se assenta no mais elevado e justo Tribunal do universo.
A propiciação e a fé em Cristo
É importante compreender corretamente as palavras: ―Ao qual Deus propôs para propiciação pela fé no seu sangue, para demonstrar a sua justiça pela remissão dos pecados dantes cometidos …‖ (Rm 3:25). O significado se torna mais claro quando colocamos vírgulas antes e depois de ―pela fé‖: ―Ao qual Deus propôs para propiciação, pela fé, no seu sangue …‖ Na versão ARA lemos: ―A quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação, mediante a fé, para manifestar sua justiça, por ter Deus, na sua tolerância, deixado impunes os pecados anteriormente cometidos‖. W. E. Vine explica que a tradução ―fé no seu sangue‖ é incorreta, pois a fé sempre descansa numa Pessoa viva, nunca no sangue. A fé é a maneira de tomar posse do perdão; o sangue é o meio pelo qual o perdão é efetuado.
Todavia, é importante lembrar que é a fé no Senhor Jesus Cristo que nos introduz às bênçãos da Sua obra no Calvário. As palavras ―pela fé‖ ocorrem aqui como parte da ênfase na passagem sobre o meio da justificação. Já foi enfatizado que as palavras ―a propiciação pelos nossos pecados‖ é a linguagem da fé, e que todos podem clamar: ―Ó Deus, tem misericórdia de mim, pecador!‖
A propiciação e o sacerdócio de Cristo
―Por isso convinha que em tudo fosse semelhante aos irmãos, para ser misericordioso e fiel sumo sacerdote naquilo que é de Deus, para expiar os pecados [―fazer propiciação pelos pecados‖, ARA] do povo. Porque naquilo que ele mesmo, sendo tentado, padeceu, pode socorrer aos que são tentados‖ (Hb 2:17-18). A palavra aqui traduzida ―expiação‖ na AT éhilaskomai, ―propiciação‖. A diferença entre ―reconciliação‖ e ―propiciação‖ é que pessoas são reconciliadas e pecados são propiciados.
Se em Romanos 3 a propiciação é a base da nossa justificação, e em I João 2 ela é a base da advocacia de Cristo, então em Hebreus 2 a propiciação é a base do Seu sacerdócio. É importante lembrar que Hebreus apresenta dois aspectos da obra de Cristo como sumo sacerdote, e ambos são mencionados aqui. O Senhor Jesus é ―um misericordioso e fiel sumo sacerdote naquilo que é de Deus‖, em primeiro lugar para ―fazer propiciação pelos pecados do povo‖, e, em segundo lugar ―para socorrer aos que são tentados‖. O primeiro é completo: a obra nunca será repetida. O segundo é contínuo: a obra continua dia a dia. O significado da palavra ―socorrer‖ pode ser ilustrado na referência ao ministério de Melquisedeque para com Abraão. Ele reanimou e fortaleceu o guerreiro cansado e o ajudou a resistir o rei de Sodoma (Gn 14). No Velho Testamento, o sumo sacerdote aspergia o sangue no Dia de Expiação, lançando assim a base de aproximação a Deus, e com esta base, ele podia representá-los perante Deus. A obra propiciatória do Senhor Jesus é a base do Seu ministério como sumo sacerdote em nosso favor. Ele já tratou da questão do nosso pecado e injustiça, e por isto, com razão, podemos cantar:
Jesus, Grande Sumo Sacerdote meu, Ofereceu Seu sangue e morreu; Minha consciência culpada nenhum outro sacrifício quer; Seu sangue uma vez propiciou, e agora, ante o trono, vem interceder.
I. Watts (tradução literal)
A propiciação e a advocacia de Cristo
―Meus filhinhos, estas coisas vos escrevo, para que não pequeis; e, se alguém pecar, temos um Advogado para com o Pai, Jesus Cristo, o justo. E ele é a propiciação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo‖ (I Jo 2:1-2).
Em I João, a palavra ―pecado‖ é usada para traduzir, não duas palavras diferentes, mas dois tempos diferentes. Por exemplo, em 3:9, as palavras ―qualquer que é nascido de Deus não comete pecado‖, significam que salvos não vivem na prática do pecado. Mas, aqui, em 2:1, as palavras ―se alguém pecar‖ significam pecado num momento de tempo. ―Não é uma questão da prática do pecado, mas de uma falha específica‖ (H. A. Ironside). É importante entender a diferença entre estes dois exemplos. Pessoas salvas ―andam na luz‖. Elas aborrecem o pecado, e amam a santidade. O pecado as entristece quando aparece nas suas vidas: eles certamente não vivem na prática do pecado. Pessoas que dizem ser salvas, mas que continuam sem mudança nas suas vidas, não são salvas. Elas ―andam nas trevas‖.
Quando um salvo peca, a confissão é necessária: ―Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados, e nos purificar de toda a injustiça‖ (I Jo 1:9). Mas o Senhor Jesus está envolvido na nossa restauração. ―Se alguém pecar, temos um Advogado para com o Pai, Jesus Cristo, o justo‖ (I Jo 2:1). A palavra ―Advogado‖ é traduzida ―Consolador‖ em João 14:26; 15:26; 16:7. Segundo W. E. Vine, a palavra ―era usada no tribunal de justiça para descrever um assistente legal, um conselheiro para a defesa, e um advogado; assim significa, de um modo geral, alguém que intercede em favor de outro, intercessor, defensor, como em I João 2:1‖.
Embora o sentido mais amplo da palavra — ―alguém chamado ao lado para ajudar‖ — seja bem aplicado às referências citadas no evangelho de João caps. 14 a 16, onde o Senhor Jesus Se refere ao trabalho do Espírito Santo, é importante lembrar que as palavras da Bíblia devem sempre ser entendidas no seu contexto. Em I João, o contexto certamente é legal — pecado foi cometido — e assim as implicações legais de um ―advogado‖ são aplicáveis. A passagem não diz: ―Se confessarmos nosso pecado, temos Advogado para com o Pai‖, mas: ―Se alguém pecar, temos Advogado para com o Pai‖. O Senhor Jesus age em nosso favor imediatamente que pecamos; Ele trata o caso no exato momento da falha. Ele age, não perante Deus, mas perante o Pai. ―Temos Advogado para com o Pai, Jesus Cristo, o justo‖. Esta diferença é muito importante. Quando pecamos, nossa posição perante Deus não é alterada, e, portanto, não precisamos de um Advogado para com Deus. Se o versículo dissesse: ―temos Advogado para com Deus‖ implicaria que a questão do pecado não fora resolvida. Mas, graças a Deus, está resolvida. ―O sangue de Jesus Cristo, Seu Filho, nos purifica de todo o pecado‖ (I Jo 1:7). A questão do pecado para com Deus foi tratada justamente e judicialmente. Se ainda precisássemos de um ―Advogado para com Deus‖ não poderíamos mais falar da salvação mediante a ―obra consumada‖ de Cristo. No nível humano, um pai pode ter filhos errantes, mas continuam sendo seus filhos e, citando W. Lincoln: ―Há toda diferença no mundo entre ‗nosso Pai’ vendo nosso pecado e ‗Deus’ vendo nosso pecado‖. O pecado entristece o Pai, mas já está resolvido eternamente perante Deus. Quando salvos pecam, seu relacionamento com Deus não é mudado, mas seu relacionamento com o Pai foi mudado. Em outras palavras, nossa união com Deus não pode ser quebrada, mas nossa comunhão com o Pai pode ser quebrada. Alguém expressou isto de maneira encantadora: o propósito da advocacia de Cristo não é colocar filhos na família de Deus, mas mantê-los na família!
O Senhor Jesus pode agir como nosso ―Advogado para com o Pai‖ porque, em primeiro lugar, Ele é ―Jesus Cristo, o Justo‖ e, em segundo lugar, porque ―Ele é a propiciação pelos nossos pecados‖. Nosso Advogado já esteve aqui, Sua justiça perfeita já foi demonstrada num mundo pecaminoso, portanto Ele é perfeitamente qualificado para agir em nosso favor. Ele faz isto, não apresentando circunstâncias atenuantes ou desculpas vãs, mas como ―a propiciação pelos nossos pecados‖. Quem melhor para interceder nossa causa perante o Pai do que Aquele que enfrentou a ira de Deus contra o pecado? Ele apresenta a Sua própria morte como a base sobre a qual o Pai pode mostrar misericórdia ao Seu filho errante. É muito importante notar que João não diz: ―Ele era o propiciação pelo nosso pecado‖, mas ―Ele é a propiciação pelo nosso pecado‖. Isso enfatiza a eficácia permanente da Sua Obra no Calvário. Como em 4:10, João usa a palavra hilasmos, enfatizando que Cristo é, Ele mesmo, o sacrifício pelo qual Deus pode mostrar misericórdia. Quando nós pecamos, o Senhor Jesus apresenta a Sua morte em nosso favor como a base da restauração da nossa comunhão com o Pai.
Resumindo, podemos dizer que enquanto o sacerdócio do Senhor depende, entre outras coisas, da Sua semelhança conosco, Sua advocacia depende da Sua falta de semelhança conosco. Seu sacerdócio tem o propósito de nos fortalecer; o propósito da Sua advocacia é nos restaurar.
Precisamos considerar mais um assunto de grande importância. Lemos em I João 2:2: ―Ele é a propiciação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo‖; mas a tradução de J.N.D contém uma alteração importante: ―Ele é a propiciação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também por todo o mundo‖; somente o salvo pode dizer, ―Ele é a propiciação pelos meus pecados‖. Se Cristo é a propiciação ―pelos pecados de todo o mundo‖, então todo o mundo é salvo e está caminhando para o céu. Mas não é isso que é afirmado aqui. Antes, ―Ele é a propiciação … por todo o mundo‖. Isso é ilustrado com clareza quando consideramos novamente o que acontecia no Dia da Expiação, relatado em Levítico 16. Como já observamos, o primeiro dos dois bodes era ―do Senhor‖; era o bode sobre o qual caiu a sorte ―pelo Senhor‖ (vs. 8-9). Seu sangue era aspergido ―sobre o propiciatório, e perante a face do propiciatório‖ (v. 15). Nenhum pecado era confessado sobre este bode; o sangue satisfez as exigências de Deus contra o pecado. Nenhum pecado podia ser remido até que aquele sangue estivesse na presença de Deus vindicando e honrando Seu nome. O sangue do Senhor Jesus satisfez perfeitamente as exigências de Deus, e o servo de Deus pode ―rogar e suplicar, até aos Seus inimigos, que se reconciliem com Deus‖ (W. Kelly). A propiciação é a base do Evangelho; mostra-nos como Deus está numa posição para salvar ―todo aquele que invocar o nome do Senhor‖. Ninguém é excluído do alcance desta mensagem. ―Ninguém é, por predeterminação divina, excluído do alcance da misericórdia de Deus‖ (W. E. Vine). A doutrina da ―expiação limitada‖ é totalmente estranha às Escrituras.
O Senhor Jesus não morreu somente em favor dos eleitos. Mas somente aqueles que vem a Cristo, confessando os seus pecados, confiando nEle, pela fé, para a salvação, podem dizer: ―Ele é a propiciação pelos meus pecados‖. Assim eles tomam a posição descrita em relação ao segundo bode (o bode expiatório) em Levítico 16:21: ―E Arão porá ambas as mãos sobre a cabeça do bode vivo, e sobre ele confessará todas as iniquidades dos filhos de Israel, e todas as suas transgressões, e todos os seus pecados; e os porá sobre a cabeça do bode‖.
Nas palavras do Conde N. L. Von Zinzendorf:
Senhor, creio que Teu sangue expiatório, Que diante do Divino propiciatório
Pelos pecadores para sempre é apresentado, Por mim, por minha alma, foi derramado.
Senhor creio que se houvesse mais pecadores Que toda a areia nas praias dos mares, Tu pagaste para todos o resgate tão grande, E a todos a expiação completa abrange.
Podemos proclamar a todos, confiantes, a grande mensagem do Evangelho, que ―Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê, não pereça, mas tenha a vida eterna‖ (Jo 3:16).

 

 

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