O que é o novo nascimento?

"A isto respondeu Jesus: ... Se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus ... Em verdade te digo: Quem não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus. O que é nascido da carne, é carne; e o que é nascido do Espírito, é espírito. Não te admires de eu te dizer: Importa-vos nascer de novo" (João 3:3-7). 

 

São poucos os assuntos espirituais que têm causado maior dificuldade e perplexidade que o da regeneração, ou seja, o novo nascimento. Muitíssimos crentes - objetos do novo nascimento - ignoram seu significado e, mais ainda, duvidam de que aconteceu com eles mesmos. Muitos, se fossem expressar os seus pensamentos, diriam: - "Oh, se eu soubesse com certeza que tenho passado da morte para a vida! ...se somente soubesse que tenho nascido de novo! que feliz seria!" E assim permanecem, acabrunhados por dúvidas e temores, dia após dia, ano após ano. Às vezes, cheios de esperança, crêem que a grande mudança se realizou neles; mas, de repente, algo surge em sua alma ou em sua vida que lhes induza pensar que a dita esperança era ilusória. 

o que ocorre é que julgam o assunto por seus próprios sentimentos e experiência, em vez de fazê-la através do puro e simples ensino da Palavra de Deus. 

Temo que a causa principal da incompreensão a este respeito provém do costume de pregar a regeneração e os seus frutos no lugar de anunciar a Cristo; de colocar o efeito antes da causa, que provocará sempre muita confusão.

 

Consideraremos, pois:

 

1. O que é a regeneração?

 

2. Como se produz o novo nascimento?

 

3. Quais são os seus resultados?

 

 

1. O QUE É REGENERAÇÃO?

 

Muitos acreditam que é uma mudança radical da velha natureza, operada pelo Espírito Santo, até que esta fique exterminada. 

Isso já implica em dois erros:

 

a) No tocante à verdadeira condição da velha natureza, e

b) Quanto à personalidade do Espírito Santo. 

 

Em outras palavras, é negar que a natureza humana é irremediavelmente arruinada e considerar o Espírito Santo mais como uma influência que como uma Pessoa. 

 

O Testemunho da Palavra de Deus 

 

Vejamos o que diz a Palavra de Deus com referência à natureza do ser humano: "Viu o Senhor que a maldade do homem se havia multiplicado na terra, e que era continuamente mau todo desígnio do seu coração", ou seja, que todos os seus pensamentos e desejos sempre, e tão somente, tendiam ao mal (Gênesis 6:5). As palavras "todo" e "continuamente" excluem por completo qualquer idéia de emenda, a saber, de que pudesse haver algum princípio redentor na condição humana diante de Deus. E mais adiante, lemos ainda: "Do céu olha o Senhor para os filhos dos homens, para ver se há quem entenda, se há quem busque a Deus. Todos se extraviaram e juntamente se corromperam: não há quem faça o bem, não há nem um sequer" (Salmo 14: 2-3). Aqui novamente as expressões "todos", "juntamente" e "não há nem um sequer" excluem a menor ideia de melhoramento na condição do ser humano, tal como é julgada na presença de Deus.

 

Havendo obtido uma prova dos escritos de Moisés e outra dos Salmos, tomaremos agora umas quantas mais dos Profetas: 

"Por que haveis de ainda ser feridos, visto que continuais em rebeldia? Toda cabeça está doente e todo o coração enfermo. Desde a planta do pé até à cabeça não há nele causa sã ... " (Isaías 1:5, 6). 

"Uma voz diz: Clama; e alguém pergunta: Que hei de clamar? Toda a carne é erva, e toda a sua glória como a flor da erva" que pronto murcha (Isaías 40:6). 

"Enganoso é o coração, mais do que todas as causas, e desesperadamente corrupto" (literalmente: "incurável", "desenganado") (Jeremias 17 :9).

 

Bastam essas citações do Antigo Testamento; vejamos agora alguns textos do Novo: 

"Mas o próprio Jesus não se confiava a eles, porque os conhecia a todos. E não precisava de que alguém lhe desse testemunho a respeito do homem, porque ele mesmo sabia o que era a natureza humana" (João 2:24- 25). 

"O que é nascido da carne, é carne"(João 3:6). 

Leia também o vívido testemunho de Romanos 3:9-19: "... temos nós qualquer vantagem? não, de forma nenhuma; pois já temos demonstrado que todos, tanto judeus como gregos, estão debaixo do pecado; como está escrito: Não há justo, nem sequer um, Não há quem entenda, não há quem busque a Deus ...nem um sequer, ...Ora, sabemos que tudo o que a lei diz aos que vivem na lei o diz, para que se cale toda boca, e todo o mundo seja culpável perante Deus". 

"Porque o pendor da carne (Isto é: o sentir, a mente da 'carne' ou do 'homem natural') dá para a morte ...Por isso o pendor da carne é inimizade contra Deus, pois não está sujeito à lei de Deus, nem mesmo pode estar. Portanto os que estão na carne (em sua condição natural de ser não regenerado, não nascido de novo) não podem agradar a Deus" (Romanos 8:6- 8). 

E o apóstolo Paulo recordava aos Efésios que: "naquele tempo, estáveis sem Cristo, separados da comunidade de Israel, e estranhos às alianças da promessa, não tendo esperança, e sem Deus no mundo" (cap. 2:12). Poderíamos multiplicar as citações, mas não é preciso. Estas provam claramente que a natureza humana é "corrupta", como "chaga podre", "inútil", "sem esperança" e completamente "desenganada". 

Como, pois, estando em semelhante condição diante Deus, poderia ela reformar-se e menos ainda transformar-se? 

"Pode acaso o etíope mudar a sua pele, ou o leopardo as suas manchas?" (Jeremias 13:23). 

"Aquilo que é torto não se pode endireitar; e o que falta não se pode calcular" (Eclesiastes 1:15). 

 

O Método Divino

 

Quanto mais detidamente examinarmos a Palavra de Deus, tanto melhor veremos que o método divino não consiste em reformar uma coisa arruinada, senão em criar algo inteiramente novo. A finalidade do Evangelho não é a de melhorar ao homem - como se lhe colocasse um remendo em seu vestido velho, esfarrapado e gasto - mas sim em prover-lhe um novo vestido. A Lei e os Mandamentos (que o homem não cumpriu) não surtiram efeito algum; aquela esperava algo do homem, mas nunca o recebeu, e estes foram promulgados, mas o homem se valeu dos mesmos para excluir Deus. O Evangelho, pelo contrário, nos mostra a Cristo glorificando a Lei e fazendo-a honorável; nos revela a Cristo morrendo na cruz e cravando ali as ordenanças que nos eram contrárias; apresenta a Cristo levantado da sepultura e ocupando o Seu lugar - como Conquistador - à destra da Majestade nas alturas; e, finalmente, declara que todos quantos crêem em Seu nome são participantes de Sua própria vida e tornam-se um só com o Senhor ressuscitado. 

Lede cuidadosamente as seguintes passagens: 

"Estes, porém, foram registados para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo tenhais vida em seu nome" (João 20:31). 

"Tomaste, pois, irmãos, conhecimento de que se vos anuncia remissão de pecados por intermédio deste; e por meio dele todo o que crê é justificado de todas as cousas das quais vós não pudestes ser justificados pela lei de Moisés" (Atos 13:38- 39). 

"Fomos, pois, sepultados com ele na morte pelo batismo; para que, como Cristo - ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também andemos nós em novidade de vida. Porque se fomos unidos com ele na semelhança da sua morte, certamente o seremos também na semelhança da sua ressurreição; sabendo isto, que - foi crucificado com ele o nosso velho homem, para que o corpo do pecado seja destruído (eliminado, abolido), e não sirvamos o pecado como escravos; porquanto quem morreu, justificado está do pecado .... Assim também vós considerai-vos mortos para o pecado, mas vivos para Deus em Cristo Jesus" (vide Romanos 6:4-11). 

"Ele vos deu vida, estando vós mortos nos vossos delitos e pecados, nos quais andastes outrora ... Mas Deus, sendo rico em misericórdia, por causa do grande amor com que nos amou, e estando nós mortos em nossos delitos, nos deu vida juntamente com Cristo, - pela graça sois salvos, e juntamente com ele nos ressuscitou e nos fez assentar nos lugares celestiais em Cristo Jesus" (Efésios 2: 1-6). 

No capítulo 3: 14-19 da mesma epístola, acrescenta o apóstolo: "Por esta causa me ponho de joelhos diante do Pai,... (rogando) que sejais fortalecidos com poder, mediante o seu Espírito no homem, interior; e assim habite Cristo nos vossos corações, pela fé, estando vós arraigados e alicerçados em amor, a fim de poderdes compreender, com todos os santos (ou seja, os crentes), qual é a largura, e o comprimento, e a altura, e a profundidade, e conhecer o amor de Cristo que excede todo entendimento, para que sejais tomados de toda a plenitude de Deus ". 

Não deixe de ler Colossenses 2: 9-15. É de suma importância conhecer claramente tão vital assunto, porque se cremos que aos poucos se produzirá uma mudança em nossa velha natureza, permaneceremos, naturalmente, em contínua ansiedade, com dúvidas e temores, até comprovar - desiludidos- que a "carne" segue sendo "carne" (João 3:6); ou seja, que a velha natureza nunca deixará de ser até o fim. Nenhuma influência ou operação do Espírito  Santo pode transformar a "carne" em algo espiritual. As Sagradas Escrituras a apresentam, não como algo que tem que ser melhorado, mas sim como algo que Deus considera como "morto ", e somos chamados a "mortificá-la" (mantê-la morta, subjugá-la, negá-la) em todos os seus desejos e obras. 

É na cruz do Senhor Jesus Cristo onde vemos o fim de nossa velha natureza: 

"E os que são de Cristo Jesus crucificaram a carne, com as suas paixões e concupiscências" (Gálatas 5:24).

Não diz aqui que os que são de Cristo tratam de melhorar e reformar a sua "carne", senão que "crucificaram a carne". E como podem levar isso acabo? 

Pelo poder do Espírito Santo atuando, não sobre a velha natureza, mas sim sobre a nova, capacitando-os para deportar o velho homem para onde a cruz o tem colocado: no lugar da morte. 

 

Deus Não Espera Nada da Velha Natureza

 

Deus não espera nada da "carne" e a considera como morta; nós devemos fazer o mesmo. Ele colocou-a fora de Sua vista, e ali é onde temos de mantê-la também. Não deveríamos permitir a menor manifestação da velha natureza, porquanto Deus não permite. É bem verdade que ela está em nós, mas Deus nos concede o precioso privilégio de considerá-la e de tratá-la como morta. E a exortação que o Senhor nos dirige é: "Assim também vós considerai-vos mortos para o pecado, mas vivos para Deus em Cristo Jesus" (Romanos 6:11). Isso produz um imenso alívio no coração que tem lutado desesperadamente durante anos para melhorar a sua natureza. 

Constitui também um poderoso conselho para a consciência que intencionou fundamentar a sua paz sobre uma reforma gradual de algo que não tem a menor possibilidade de melhoramento.

Finalmente, é um imenso descanso para a alma que - anos após anos - tem desejado a santidade, mas que tem considerado essa como o melhoramento da "carne", a qual odeia a santidade e ama o pecado. Para todas e cada uma dessas coisas, acaba sendo muitíssimo valioso e de suma importância entender a verdadeira natureza ou condição do novo nascimento. Ninguém que não o tenha experimentado pode conceber a intensidade da angústia e a amarga desilusão que sente a alma que - esperando em vão alguma melhora em sua natureza - dá-se conta, após anos de luta, de que ela segue sempre sendo a mesma. E, na medida de sua angústia e de sua desilusão, será o seu gozo descobrir que Deus não espera melhora alguma na velha natureza, mas sim que a considera como morta, e a nós como vivos em Cristo, unidos a Ele e aceitos n'Ele para sempre. 

 

O Que É a Regeneração?

 

A regeneração é, pois, um novo nascimento - o dom, a comunicação de uma vida -, a implantação de uma nova natureza; a formação de um novo homem. A velha natureza permanece com todas as suas características, mas a nova é introduzida também com todas as suas qualidades, tendências e efeitos, mas esses são espirituais, celestiais e divinos. Todos os seus desejos e afãs se dirigem para o alto, suspira para a fonte celestial de onde brotou. E assim como na natureza a água sempre busca alcançar o seu nível, do mesmo modo no âmbito da graça a nova (e divina) natureza aponta sempre para o céu, de onde procedeu. A regeneração é, pois, para a alma o que o nascimento de Isaque foi para a casa de Abraão (Gênesis 21). Ismael seguiu sendo o mesmo Ismael, mas apareceu Isaque, do mesmo modo, a velha natureza segue sendo a mesma, porém a nova é introduzida na vida do crente: "o que é nascido do Espírito, é espírito". Assim como a criança participa da natureza de seus pais, os crentes são feitos "coparticipantes da natureza divina" (2 Pedro 1:4). "Pois, segundo o seu querer, ele (Deus) nos gerou" (Tiago 1: 18). 

Por fim, a regeneração é somente obra de Deus, desde o princípio até o fim. Ele é que opera, o homem é o feliz e privilegiado objeto dessa ação. 

Não se busca a sua colaboração numa obra que levará sempre o selo de uma só mão todo poderosa. Deus operou sozinho na criação, sozinho na redenção; de igual maneira, deve executar sozinho a gloriosa obra da regeneração.

"Não por obras de justiça praticadas por nós, mas segundo sua misericórdia, ele nos salvou mediante o lavar regenerador e renovador do Espírito Santo, que ele derramou sobre nós ricamente, por meio de Jesus Cristo nosso Salvador" (Tito 3:5-6). 

 

 

2. COMO SE PRODUZ O NOVO NASCIMENTO?

 

Tendo buscado demonstrar, com várias passagens das Escrituras, que a regeneração (ou o novo nascimento) longe de ser uma mudança na natureza do homem caído é unicamente a aquisição da nova natureza (divina), procuraremos agora - apoiando-nos sobre o ensino do bendito Espírito Santo - considerar como se produz o novo nascimento; como se comunica a nova natureza. Este é um ponto de suma importância, já que nos apresenta a Palavra de Deus como o grande instrumento do qual o Espírito Santo se vale para avivar as almas mortas em seus delitos e pecados. 

Do mesmo modo que os céus foram antigamente criados pela Palavra de Deus (2 Pedro 3:5), assim as almas mortas são chamadas pela Palavra do Senhor da morte à vida nova. A Palavra de Deus é criadora e regeneradora; criou os mundos, chamando-os do nada, e chama aos pecadores da morte à vida. A mesma voz que, antigamente, disse: "Haja luz", deve, em cada caso, clamar: Haja vida".

 

A Conversa de Jesus com Nicodemos 

 

Se o leitor abre a Bíblia no capítulo 3 do evangelho de João,  achará - na conversa de nosso Senhor com Nicodemos - muitos preciosos ensinos acerca do modo em que se produz o novo nascimento. Nicodemos ocupava  uma posição muito elevada no que chamaríamos de o mundo religioso. Era "um dos principais (um governante) dos judeus", um "mestre em Israel". Dificilmente teria podido ocupar uma posição mais elevada ou de maior importância. Porém era evidente que esse homem muito privilegiado não estava satisfeito. Apesar de todas as suas vantagens em questão religiosa, o seu coração anelava continuamente  algo que nem o farisaísmo e nem sequer o conjunto do sistema judaico podia lhe dar. É muito  provável que haja sido incapaz de definir o que lhe faltava, mas ansiava algo; de outro modo não teria ido a Jesus de noite. Era evidente que o Pai estava atraindo-o de modo irresistível, ainda que brandamente, para levá-lo ao Filho; e que, para isso, o Pai criou nele esse ardente desejo, esta necessidade que nada ao seu redor podia satisfazer. É o que costuma ocorrer; alguns são levados ao Senhor Jesus por um profundo sentimento de culpa, outros pelo profundo sentimento de sua necessidade.

Nicodemos pertence, desde logo, a esta última classe. Sua alta posição parece excluir a idéia de que fosse réu de alguma imoralidade grosseira; e, portanto, em seu caso, não sofreria tanto de uma consciência culpada, antes, talvez, de um coração vazio. Mas ambas as coisas hão de chegar ao mesmo fim, à mesma meta; tanto a consciência culpada como o insaciável coração hão de ser levados ao Senhor Jesus, pois Ele é o único que pode satisfazer as necessidades de ambos. Por Seu precioso sacrifício, pode tirar até mesmo a menor mancha, o mais leve borrão da consciência; e por Sua incomparável Pessoa pode encher todos os lugares vazios do coração. A consciência que tem sido purificada pelo sangue de Jesus está perfeitamente limpa e o coração cheio da Pessoa do Senhor Jesus está plenamente satisfeito.

 

É Necessário Nascer de Novo

 

Contudo, Nicodemos - como muitos outros - tinha que esquecer muitas coisas antes de que pudesse discernir realmente o conhecimento de Jesus. Tinha que deixar de lado uma embaraçosa quantidade de normas religiosas antes de poder compreender a Simplicidade divina  do plano de salvação de Deus. Tinha que descer das elevadas alturas da doutrina rabínica e da religião tradicional para aprender os rudimentos do Evangelho na escola de Cristo. Isso é muito humilhante para "um dos principais dos judeus", um "mestre em Israel ". Não há nada ao qual o homem se adira tão tenazmente como a sua religião e a seus dogmas; e, no caso de Nicodemos, as palavras de um "Mestre vindo da parte de Deus" devem ter repercutido de modo estranho em seus ouvidos, quando Ele lhe disse: - "Em verdade, em verdade te digo que se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus". Sendo judeu de nascimento e, como tal, herdeiro de todos os privilégios de um filho de Abraão, deve ter ficado extremamente perplexo ao ouvir que devia nascer de novo; que tinha que experimentar um novo nascimento para ver o reino de Deus. Isso implica a perda total de seus privilégios e honras. Cristo o fazia cair repentinamente da mais alta posição religiosa. Revela que um fariseu, um governante, um mestre, não estava de modo algum mais perto de ou mais apto para esse reino celestial que o mais desprezível dos filhos dos homens. Isso o humilhava grandemente. 

Supondo que Nicodemos tivesse podido levar consigo todas as suas vantagens e honras, de tal modo que as tivesse a seu crédito nesse novo reino, teria sido alguém. Ter-lhe-ia assegurado uma posição no reino de Deus muito por cima da que teria uma meretriz ou um publicano. Mas o ouvir que devia nascer de novo não lhe deixava nada em que pudesse se gloriar. E isso, repito, era humilhante para um homem sábio, religioso e influente como ele.

Era tão enigmático como humilhante. "Perguntou-lhe Nicodemos: Como pode um homem nascer, sendo velho?

Pode, porventura, voltar ao ventre materno e nascer segunda vez?" Seguramente que não. Um segundo nascimento natural não teria maior valor que o primeiro. Nem ainda que nascesse dez mil vezes, pois, "o que é nascido da carne, é carne". 

Por mais que façamos com a "carne" (com a velha natureza) não podemos mudar nem melhorá-la. É impossível converter a carne em espírito. Se essa verdade fosse mais amplamente conhecida, centenas de pessoas cessariam em seu "piedosos" esforços, na aquisição de vantagens ou méritos religiosos, em suas "obras de justiça", ao saber que a Palavra de Deus os considera "como trapo da imundícia" (Isaías 64:6). 

Porém, vejamos como o nosso bendito Senhor responde à pergunta de Nicodemos; é de sumo interesse: 

"Quem não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus. O que é nascido da carne, é carne; e o que é nascido do Espírito, é espírito. Não te admires de eu te dizer: Importavas nascer de novo. O vento sopra onde quer, ouves a sua voz, mas não sabes donde vem, nem para onde vai; assim é todo o que é nascido do Espírito" (João 3:5-8).

 

Nascer da Água e do Espírito

 

Essa passagem nos ensina claramente que a regeneração, o novo nascimento, é produzido por água e Espírito. O homem deve nascer da água e do Espírito antes de que possa ver o reino de Deus, ou penetrar em Seus profundos e celestiais mistérios. 

A vista aguda de um mortal, por mais penetrante que seja, não pode ver o reino de Deus, nem o mais potente cérebro humano é capaz de entrar nos profundos segredos do mesmo. "O homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las porque elas se discernem espiritualmente" (1 Coríntios 2: 14). "Quem não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus."

Pode ser, contudo, que muitos não entendam o significado de ter nascido da água. Esta expressão tem suscitado em todo tempo  discussão e controvérsia. Porém é unicamente comparando escritura com escritura que podemos encontrar o sentido real. 

No princípio do evangelho segundo João, lemos: "Veio para o que era seu, e os seus não o receberam, Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus; a saber: aos que crêem no seu nome; os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus" (João 1:11-13).

Esta passagem nos ensina que todo aquele que crê no nome do Senhor Jesus Cristo e O aceita em verdade como seu Salvador vem a ser um crente em Cristo, alguém que tem "nascido de novo", que é "nascido de Deus ". Todos os que pelo poder de Deus, o Espírito Santo, crêem em Deus, o Filho, são nascidos de Deus, o Pai. A fonte do testemunho, o objeto do testemunho e o poder para recebê-lo são divinos: toda a obra da regeneração é de Deus. Portanto, ao invés de você perguntar como Nicodemos: - Como posso voltar a nascer?, deve, sinceramente, lançar-se nos braços do Senhor Jesus Cristo; entregar-se a Ele por fé, e assim terá nascido de novo. Todos quantos depositaram sua inteira confiança em Cristo têm recebido uma nova vida; têm sido regenerados. 

 

Nova Vida em Cristo 

 

Leiamos o testemunho do Senhor: 

"Em verdade, em verdade vos digo: Quem ouve a  minha palavra e crê naquele que me enviou, tem a vida eterna, não entra em juízo, mas passou da morte para a vida" (João 5:24). 

"Em verdade, em verdade vos digo: Quem crê, tem a vida eterna" (João 6:47). 

"Estes, porém, foram registrados para que creiais que Jesus é o Cristo o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome" (João 20:31). 

Todas essas passagens provam que a única maneira em que podemos obter essa nova vida, eterna, é recebendo o testemunho que as Sagradas Escrituras dão acerca de Cristo. Notemos que isso não se aplica aos que dizem crer, senão aos que realmente crêem (que deram plena fé, que depositaram a sua inteira confiança) segundo o sentido que tem a palavra nas passagens que acabamos de citar. 

Há poder vivificante no Cristo que nos revela a Palavra de Deus, e na Palavra que nos revela a Cristo. 

"Em verdade, em verdade vos digo que vem a hora, e já chegou, em que os mortos ouvirão a voz do filho de Deus; e os que a ouvirem, viverão" E para dissipar toda dúvida no tocante ao que os mortos possam viver, acrescenta o Senhor: "Não vos maravilheis disto, porque vem a hora em que todos os que se acham nos túmulos ouvirão a sua voz e sairão: os que tiverem feito o bem, para a ressurreição da vida; e os que tiverem praticado o mal, para a ressurreição do juízo" (João 5:25, 28-29). 

O Senhor Jesus Cristo é poderoso para fazer que tanto as almas mortas como os corpos mortos ouçam a Sua voz vivificadora. É pela Sua poderosa voz que a vida pode comunicar-se tanto ao corpo como à alma. E se o incrédulo ou céptico argumenta ou apresenta objeções, é simplesmente porque faz de seus conceitos e de sua mente vã a norma de tudo quanto deve ser, excluindo a Deus por completo de seus pensamentos. Tal orgulho compara-se com a loucura. 

 

O Instrumento: A Palavra de Deus 

 

Mas algum leitor perguntará: - Que relação tem tudo isso com a palavra "água", citada em João 3:5? 

Então respondemos: Tanta como para demonstrar que o novo nascimento se produz, e a vida nova se comunica, pela voz de Cristo, a qual é realmente a Palavra de Deus, segundo lemos em Tiago: "Pois, segundo o seu querer, ele nos gerou pela palavra da verdade" (1: 18). E desse modo, na primeira epístola de Pedro: "pois fostes regenerados, não de semente corruptível, mas de incorruptível, mediante a palavra de Deus, a qual vive e é permanente" (1:23). Em ambas as passagens, a Palavra de Deus nos é apresentada expressamente como sendo o instrumento pelo qual se produz o novo nascimento. Tiago declara que somos gerados "pela palavra da verdade", e Pedro manifesta que somos renascidos "mediante a palavra de Deus ". 

É óbvio que o Senhor, ao falar de nascer "da água ", dava a entender - sob esta figura - a Palavra de Deus; figura ou símbolo que um "mestre em Israel" podia ter entendido tão somente por ter estudado retamente a passagem de Ezequiel 36:25-27: "Então aspergirei água pura sobre vós. e ficareis purificados; de todas as vossas imundícias e de todos os vossos ídolos vos purificarei. Dar-vos-ei coração novo, e porei dentro em vós espírito novo; tirarei de vós o coração de pedra e vos darei coração de carne. Porei dentro em vós o meu Espírito, e farei que andeis nos meus estatutos, guardeis os meus juízos e os observeis".

 

Há também uma linda passagem na epístola aos Efésios (5:25-26), donde a Palavra nos é apresentada sob a figura da água: "Maridos, amai vossas mulheres, como também Cristo amou a igreja, e a si mesmo se entregou por ela, para que a santificasse, tendo-a purificado por meio da lavagem de água pela palavra". E igualmente na epístola a Tito (3:5-7): "não por obras de justiça praticadas por nós, mas segundo sua misericórdia, ele nos salvou mediante o lavar regenerador e renovador do Espírito Santo, que ele derramou sobre nós ricamente, por meio de Jesus Cristo nosso Salvador, a fim de que, justificados por graça, nos tornemos seus herdeiros, segundo a esperança da vida eterna". 

 

Lição da Serpente de Bronze

 

Todas essas citações nos ensinam que a Palavra de Deus é  grande instrumento (ou meio)  do qual se vale o Espírito Santo para alcançar as almas sem vida, fazendo-as passar da morte para a vida. Esta verdade se confirma na resposta que o Senhor dá ao "Como pode suceder isto?" de Nicodemos. A este "mestre de Israel", Jesus ensinava a simples lição que se obtém da serpente de bronze: antigamente, os israelitas mordidos pelas serpentes eram curados com uma simples olhada para a serpente levantada (Números 21:5-9); agora o pecador morto em seus delitos e pecados pode achar vida ao olhar por fé Jesus cravado na cruz e logo assentado sobre o trono. Ao israelita não lhe disseram que tinha que contemplar as suas feridas ou mordidas, ainda que era a dor produzida pela ferida que o fazia depositar a sua olhada na serpente de bronze; do mesmo modo o pecador morto em seus delitos não deve contemplar os seus pecados, ainda que seja o profundo sentir dos mesmos que o faça olhar. Uma olhada de fé à serpente levantada curava o israelita, uma olhada de fé em Jesus crucificado na cruz do Calvário vivificará o pecador sem vida. Aquele não teve que olhar duas vezes para ser sarado; este não deve olhar duas vezes para receber a vida. Não foi a maneira de olhar, mas sim o objeto em que olhou o israelita que o sarou; tampouco é o modo de contemplar, senão o objeto sobre o qual o pecador crava a vista que o salva: "Olhai para mim" - disse o Senhor - "e sede salvos, vós, todos os termos da terra" (Isaías 45:22). Essa foi a preciosa lição que Nicodemos tinha que aprender; essa foi a resposta à sua pergunta. Se alguém começa a pensar sobre o novo nascimento, chegará à confusão; mas se deposita sua fé em Jesus, nascerá de novo. A razão humana nunca poderá compreender o novo nascimento, o qual é produzido pela Palavra de Deus. Muitos se equivocam nesse assunto; se ocupam com o processo ou marcha da regeneração, em vez de ocupar-se com a Palavra regeneradora. E o resultado é que estão perplexos e confusos. Estão olhando-se a si mesmos, em vez de cravar o olhar em Cristo. O que teria ganhado um israelita ao contemplar a suas feridas? Nada!

O que ganhou ao olhar para a serpente levantada? A saúde.

O que consegue o pecador ao olhar-se a si mesmo? Nada! 

O que ganha ao cravar a sua olhada em Jesus? "A vida eterna."

 

3. QUAIS SÃO OS SEUS RESULTADOS?

 

Como terceiro e último ponto, consideraremos os resultados da regeneração, tema - resta dizer - de grande interesse. 

Quem poderia jamais apreciar devidamente os gloriosos resultados de ser filho de Deus?

Quem poderia descrever os afetos próprios destas altas e santas relações nas quais entra a alma ao nascer de novo? 

Quem pode explicar plenamente essa preciosa comunhão de que goza o privilegiado filho de Deus com Seu Pai celestial? 

"Vede que grande amor nos tem concedido o Pai, ao ponto de sermos chamados filhos de Deus; e, de fato, somos filhos de Deus. Por essa razão o mundo não nos conhece, porquanto não o conheceu a ele mesmo. Amados, agora somos filhos de Deus, e ainda não se manifestou o que havemos de ser. Sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque havemos de vê-la como ele é. E a si mesmo se purifica todo o que nele tem esta esperança, assim como ele é puro" (1 João 3: 13). 

"Pois todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. Porque não recebestes o espírito de escravidão para viverdes outra vez atemorizados, mas recebestes o espírito de adoção, baseados no qual clamamos: Aba, Pai. O próprio Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus. Ora, se somos filhos, somos também herdeiros, herdeiros de Deus e coerdeiros com Cristo: se com ele sofrermos, para que também com ele sejamos glorificados" (Romanos 8:14-17). 

 

Vida e Paz 

 

É de suma importância  compreender a diferença que existe entre "vida" e "paz". 

A primeira é o resultado da nossa união com a Pessoa de Cristo; a última é o resultado da Sua obra.

"Aquele que tem o filho tem a vida" (1 João 5:12); 

mas "Justificados, pois, mediante a fé, temos paz ... " (Romanos 5: 1) - 

"havendo feito a paz pelo sangue da sua cruz" (Colossenses 1:20). 

Tão prontamente um homem aceita, em seu coração, a simples verdade do Evangelho, vem a ser um filho de Deus; e essa verdade é a "semente incorruptível" da "natureza divina" (1 Pedro 1:23; 2 Pedro 1:4). 

Muitos não estão conscientes de tudo quanto implica a aceitação da verdade evangélica, assim como o filho de um nobre pode ignorar - por sua pouca idade - as vantagens de seu parentesco. Mas isso não muda em nada o fato; posso não estar plenamente consciente do parentesco e de seus resultados, mas isso não modificará em nada a minha posição, desfruto dos efeitos próprios do mesmo, e devo cultivá-los a fim de que me unam estreitamente Àquele que me gerou pela Palavra da verdade (Tiago 1:18). Tenho o privilégio de gozar plenamente do abundante amor paterno que flui do seio de Deus, e de devolver esse amor, essa devoção, pelo poder do Espírito que habita em mim. "Agora somos filhos de Deus" (1 João 3:2). Ele nos fez assim, dispondo que esse maravilhoso privilégio fosse a porção de todo aquele que cresse na verdade revelada: "Mas, a todos quantos o receberam, deu lhes o poder de serem feitos filhos de Deus" (João 1:12). E não conseguimos essa posição "por obras de justiça praticadas por nós", mas sim simplesmente segundo sua misericórdia, ele (Cristo) nos salvou mediante o lavar regenerador e renovador do Espírito Santo, que ele derramou sobre nós ricamente, por meio de Jesus Cristo nosso Salvador, a fim de que, justificados por graça, nos tornemos seus herdeiros" (Tito 3:5-7); e isso simplesmente por depositar a nossa fé na verdade do Evangelho, que é "a semente" incorruptível de Deus.

 

Quando se Recebe a Vida? 

 

Tomemos o caso do mais vil pecador, que até então tem levado uma vida mergulhada no lodo da corrupção. Deixemos que o puro Evangelho de Deus ilumine a sua consciência, revelando-lhe a sua condição de pecador irremediavelmente perdido, levando-o ao arrependimento sincero, de tal modo que receba em seu coração as boas novas da salvação; deixemos que creia de todo coração que "Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, e que - o sepultado, e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras" (1 Coríntios 15:3-4); quando este pecador aceitar assim a Cristo, será um filho de Deus, uma pessoa completamente salva, perfeitamente justificada e aceita por Deus. Ao receber em seu coração o simples testemunho acerca de Cristo, terá recebido vida nova. Cristo é a verdade e a vida; e quando recebemos a verdade, recebemos a Cristo; e quando aceitamos a Cristo, recebemos a vida: "Por isso quem crê no Filho tem a vida eterna; o que, todavia, se mantém rebelde contra o Filho não verá a vida, mas sobre ele permanece a ira de Deus" (João 3:36). E quando recebe aquela vida? Desde o momento em que deposita a sua fé em Cristo: "para que, crendo, tenhais vida em seu nome" (João 20:31). A verdade acerca de Cristo é semente de vida eterna, e quando essa verdade é aceita no coração, é recebida a vida. 

 

Não É Sentir, Senão Crer 

 

Notemos que isso é no tocante ao que afirma a Palavra de Deus; se trata pois de um testemunho divino, e não de humanos sentimentos. Não recebemos a vida por sentir algo em nós, senão por crermos realmente em Cristo; e para isto temos a autoridade da Palavra eterna de Deus, as Santas Escrituras. Convém entender bem este aspecto da verdade. Muitos esperam ver neles mesmos as evidências ou provas da vida nova, em vez de olhar para fora a fim de contemplar a Aquele que comunica a dita vida. Bem é verdade que "aquele que crê no Filho de Deus tem em si o testemunho" (1 João 5:10); mas é também certo que, se tomo tal testemunho como meta ou centro de minha vida espiritual, viverei rendido em dúvidas e incerteza. 

Enquanto que Cristo enche a minha visão, o testemunho em mim estará revestido de toda a Sua divina integridade e poder, e minha consciência achará repouso. É bem conveniente esclarecer este ponto, já que existe uma forte tendência em nossos corações para buscar dentro de nós mesmos o fundamento de nossa paz e satisfação, em vez de edificá-lo só e exclusivamente sobre Cristo. Quanto mais sinceramente cravarmos o nosso olhar em Cristo, fora de qualquer outra coisa, tanto mais sossegados e felizes seremos; mas, tão pronto apartemos o nosso olhar d'Ele, seremos desgraçados, desengonçados e infelizes. Em uma palavra, o leitor deve esforçar-se em compreender, segundo nos ensina a Bíblia, a distinção que existe entre "vida" e "paz". Aquela é o resultado de nossa relação com a Pessoa de Cristo; esta é o resultado da fé em Sua perfeita obra. Encontramos muito freqüentemente almas nascidas de novo que estão perturbadas e inquietas quanto a sua aceitação por parte de Deus. Têm recebido a vida, mas, como não vêem a plenitude da obra de Cristo para apagar os seus pecados, estão perturbados em sua consciência, e não têm descanso ou paz em suas almas. Ilustremos esta verdade. Se colocarmos um peso de cem quilogramas sobre o cadáver de um homem, este não o sentirá; por mais que se aumente tal carga, não lhe doerá, nem estará consciente da mesma, porque não tem vida! Porém, suponhamos por instante que ele a recuperasse, que aconteceria? Experimentaria uma terrível sensação de opressão.

Agora bem, que necessitaria para desfrutar plenamente da vida que tem recebido? que tirassem por completo o peso que lhe oprime. Ocorre o mesmo com o pecador que recebe a vida ao crer na Pessoa do Filho de Deus; enquanto estava num estado de morte espiritual, carecia de sensibilidade espiritual, não tinha a menor noção do peso que lhe oprimira. 

No entanto, a vida nova lhe tem dado uma sensibilidade espiritual e sente agora essa carga que consciência, e não sabe como poderá desfazer-se da mesma.

Ainda não tem compreendido tudo quanto implica a fé no nome do Filho unigênito de Deus; nem tem visto que Cristo é ao mesmo tempo a sua justificação e a sua vida. O que necessita é considerar sinceramente o sacrifício expiatório de Cristo, Sua obra redentora plenamente cumprida, por meio da qual todos os seus pecados foram afundados para sempre nas águas do esquecimento eterno. E é isso, e somente isso, o que pode tirar e afastar os fardos e angústias do  coração, e infundir esse profundo repouso espiritual que já nada poderá turbar.

Se considero Deus como um Juiz, e tenho-me por um pecador perdido, necessito do precioso sangue de Cristo, o sangue da cruz, para levar-me a Sua presença pelo caminho da justiça. Devo compreender claramente que qualquer demanda que Deus, o justo Juiz, tenha contra mim, pecador culpável, tem sido contestada e eternamente resolvida pelo "precioso sangue de Cristo". Isso é o que infunde paz à minha alma. E vejo que, por meio daquele sangue, Deus pode ser "justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus" (Romanos 3:26). Vejo que, na cruz, Deus tem sido plenamente glorificado quanto a meus pecados, e que inclusive a questão do pecado tem sido plena e perfeitamente resolvida entre Deus e Cristo na profunda e espantosa solidão do Calvário, quando Ele, a Vítima santa, pura e inocente, foi feito pecado por nós, e teve que exclamar: "Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?". 

Agora, pois, meu fardo tem sido tirado; o peso opressor tem sido removido; tenho sido absolvido de toda a culpa. Posso respirar livremente, desfruto de uma paz perfeita, já que não existe acusação contra mim; estou livre pelo sangue de Cristo. O Juiz se tem declarado satisfeito pela ressurreição de meu Substituto, sentando-O à destra de Sua Majestade nas alturas.

A adoção divina Porém ainda há algo mais, e de imenso valor. Não somente me considero como um pecador culpável ao qual tem sido franqueado o livre acesso a Deus, justo Juiz, senão que posso contemplar como Deus - no cumprimento de Seus eternos desígnios de amor - me gerou pela Palavra da verdade, fez de mim Seu filho ao adotar-me em Sua família, e colocou-me diante d'Ele de tal modo que posso desfrutar de Sua comunhão paterna, e ser objeto dos ternos afetos do círculo familiar divino. Esse é certamente outro aspecto do caráter e da posição do crente.

Já não se trata de apresentar-me diante Deus, plenamente consciente de que qualquer demanda Sua tem sido perfeitamente satisfeita (coisa sumamente preciosa para um coração oprimido pelos seus pecados), senão que existe muito mais: o fato de que Deus é meu Pai e eu Seu filho. Ele tem um coração de pai, com cujo amor posso contar em meio de minha fraqueza e necessidade. Deus me ama, não pelo que seria capaz de fazer, mas sim porque vim a ser Seu filho.

Observem uma vacilante criancinha, criatura essa objeto de constante cuidado e solicitude, totalmente incapaz de ajudar no mínimo aos interesses de seu pai, quem o ama tanto que não lhe trocaria por dez mil mundos; pois bem, se esses sentimentos se aninham no peito de um pai terreno, quanto mais no coração de nosso Pai celestial! Ele nos ama, não pelo que poderíamos fazer, senão porque somos Seus filhos. Ele nos gerou, segundo o Seu querer, pela Palavra da verdade (Tiago 1: 18). Do mesmo modo que nos era impossível satisfazer as demandas do justo Juiz, tampouco poderíamos conseguir, com os nossos esforços, um lugar no coração do Pai. Tudo nos foi dado gratuitamente. Pura graça! O Pai nos gerou e o Juiz mesmo achou um resgate (Jó 33:24). Por ambas as coisas somos devedores da graça divina. 

 

Responsabilidade 

 

Mas, não nos esqueçamos de que, se somos completamente incapazes de conseguir, por nossas  obras, um lugar no coração do Pai, como assim também de satisfazer as demandas do justo Juiz, temos - contudo - a responsabilidade de crer no "testemunho de Deus, que ele dá acerca do seu Filho" (1 João 5:9-11). Digo isso porque existem alguns que se protegem por trás de dogmas de uma teologia parcial e inexata, enquanto recusam crer no sincero testemunho de Deus. Há muitas pessoas (inteligentes também) que, quando são convidadas a aceitar o Evangelho da graça de Deus, respondem facilmente: - "Não posso crer enquanto Deus não me der poder para fazê-lo, e não serei investido de tal poder até que não seja um do eleitos. Se pertenço ao número dos favorecidos, devo salvar-me; em caso contrário, não posso salvar-me" . 

Esse raciocínio não só é inadmissível, senão falso, e destinado a desembocar no mais  perigoso fatalismo, o qual destrói por completo a responsabilidade do homem e desonra a administração moral de Deus. 

Equivale a afirmar que Deus é o autor da incredulidade do pecador, o que significa, em verdade, acrescentar insulto sobre insulto. Agora, cabe pensar que tão fútil argumento resistirá um só instante diante do rei dos terrores (a morte), ou perante o tribunal de Cristo? Existe por acaso uma só alma nas tétricas moradas dos perdidos que pensa em acusar a Deus de ser o autor de sua perdição eterna? De modo nenhum! 

Somente na Terra se arrazoa dessa forma. Semelhantes argumentos não se ouvem no inferno. Quando os homens descem ao inferno, só se acusam a si mesmos; no céu, louvam ao Cordeiro. Todos os perdidos terão que agradecer a si mesmos; todos os redimidos terão que agradecer a Deus. Quando a alma não arrependida desemboca do estreito canal do tempo no mar sem limites da Eternidade, compreenderá a solenidade destas palavras do Senhor: "quantas vezes quis... e vós não quisestes!" 

Em verdade, a Palavra de Deus ensina claramente tanto a responsabilidade do homem como a soberania de Deus. O ser humano se encontra diante da impossibilidade de conceber um sistema teológico que define os limites de ambas as verdades; mas não foi chamado a idealizar sistemas, senão a crer, a aceitar pela fé o sincero testemunho que Deus tem dado acerca de Seu Filho Jesus Cristo, e a ser salvo por meio d'Ele. 

 

A Disciplina do Pai 

 

Porém seguiremos considerando os resultados da regeneração focalizando agora o assunto da disciplina na casa do Pai. 

Como filhos de Deus, participamos de todos os privilégios de Sua casa; e, na realidade, a disciplina da casa constitui também um privilégio. Deus exerce Sua disciplina em nós sobre a base das relações nas quais nos tem introduzido. Se um pai corrige a seus filhos, é porque são seus. Se vejo, por exemplo, uma criança desconhecida cometer uma má ação, não me incumbe castigá-la. Para castigá-la, deveria estar unido a ela pelos vínculos paternais e conhecer os afetos e responsabilidades que entranham tal parentesco. Assim também o nosso Pai, Deus, em Sua abundante graça e fidelidade, não toleraria nada em nós que fosse indigno d'Ele e que afetaria a nossa paz e impedisse as bênçãos: "Além disso, tínhamos os nossos pais segundo a carne, que nos corrigiam, e os respeitávamos; não havemos de estar em muito maior submissão ao Pai dos espíritos, e então viveremos? Pois eles nos corrigiam por pouco tempo, segundo melhor lhes parecia; Deus, porém, nos disciplina para aproveitamento, a fim de sermos participantes da sua santidade" (Hebreus 12:9-10). 

Portanto, a disciplina constitui um privilégio positivo, porquanto é uma prova dos cuidados de nosso Pai, e tem por objetivo a nossa participação na santidade divina. 

 

A Disciplina

É Uma Prova dos Cuidados de Nosso Pai

 

Mas tenhamos sempre em conta que a disciplina da mão de nosso Pai deve sempre interpretar-se à luz do rosto de nosso Pai, e que os profundos mistérios de Seu governo moral devem ser contemplados através de Seu terno amor. Se perdemos essas coisas de vista, cairemos num espírito de servidão no tocante a nós mesmos, e num espírito de juízo quanto aos demais, ambas as coisas em oposição direta com o Espírito de Cristo. Tudo em nosso Pai é perfeito amor; se nos alimenta com pão, o faz com amor, e se deixa cair Sua vara sobre nós, também o faz com amor, porque "Deus é amor". 

Pode ocorrer freqüentemente que não saibamos averiguar o porquê, a causa de alguma dispensação ou trato especial da mão de nosso pai; isso nos parece escuro ou inexplicável. A névoa que circunda nossos espíritos é tão densa que impede ver com clareza a sua atitude para conosco. 

Atravessamos então uns momentos penosos; uma solene crise na história da alma. E corremos o perigo de perder o sentido do amor divino por nossa incapacidade em compreender os profundos segredos do governo divino. Enquanto isso, Satanás desenvolverá uma atividade febril para lançar os seus dardos inflamados de dúvidas e de sugestões diabólicas, das quais tem a aljava cheia. Assim pois, exposta entre os raciocínios impuros que surgem de dentro e as horríveis sugestões que vêm de fora, a alma corre o perigo de perder o equilíbrio e deixar o amor divino, qualquer que seja a forma em que se manifeste o governo de Deus. 

Com respeito aos demais, pode ocorrer também que julguemos erradamente aos nossos irmãos quando se encontram visitados de modo  especial pela mão de Deus em mente, corpo ou circunstâncias. Devemos nos guardar desse espírito e não pensar que a prova se deve sempre a uma causa pecaminosa, que é um princípio inteiramente falso. As experiências a que Deus nos submete podem ser tanto preventivas como corretivas. 

Citarei um exemplo: Meu filho está comigo na sala em doce intimidade quando chega uma pessoa que talvez irá dizer algumas coisas que não desejo que ele ouça; meu gesto então, sem mais explicações, é ordenar que saia da sala. Bem; se ele não confiasse em mim, poderia interpretar mal a minha atitude e pôr em dúvida meu amor; porém apenas o visitante tenha saído, chamo a meu filho e lhe explico detalhadamente o assunto, de tal maneira que ele entra em uma renovada experiência do amor de seu pai, esquecendo-se em seguida do desgosto porque passou. Pois bem, assim sucede freqüentemente com os nossos pobres corações. Raciocinamos quando deveríamos confiar, repousar; duvidamos em vez de depender. 

A confiança no imutável amor de nosso Pai é o melhor corretivo. Eterno e infinito amor que nos tem levantado de nosso miserável estado à condição de "filhos de Deus"! Oh, vivamos continuamente na atmosfera de tal amor, até que entremos na eterna e inquebrantável comunhão da casa de nosso Pai!

Deus nos ajude, por Seu Espírito Santo, a compreender mais e mais o significado e poder da regeneração, e a compenetrarmo-nos disso, para que, sabendo o que é e como se produz, seus resultados se traduzam e se manifestem em nossas vidas!

 

Por C. H. Mackintosh

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