23/12/2015 10:59
Se o leitor foi, por graça, capacitado a
se apossar do que nos foi apresentado
nestes capítulos, terá à disposição o
remédio perfeito para toda
intranquilidade de consciência e para
toda inquietude de coração. A obra de
Cristo, quando tão somente apropriada
por uma fé simples, deverá, por bendita
necessidade, atender a intranquilidade
de consciência; e a Pessoa de Cristo,
quando tão somente contemplada com
um olho simples, irá atender
perfeitamente toda inquietude de
coração. Se, por conseguinte, não nos
encontramos desfrutando de paz de
consciência, só pode ser por não
estarmos descansando na obra
consumada de Cristo; e se o coração não
estiver à vontade, é prova de que não
estamos satisfeitos com o próprio
Cristo.
E mesmo assim, quão poucos, mesmo
dentre o amado povo do Senhor,
conhecem a paz de consciência e a
quietude de coração. Quão raro é
encontrar uma pessoa desfrutando da
verdadeira paz de consciência e de
tranquilidade de coração! Os cristãos,
de um modo geral, não se encontram
nem um pouquinho mais adiantados da
condição dos santos do Antigo
Testamento. Eles não conhecem a
bênção de uma redenção consumada;
não estão desfrutando de uma
consciência limpa; não podem se
aproximar com verdadeiro coração, em
inteira certeza de fé, com os corações
purificados da má consciência, e o
corpo lavado com água limpa; não
compreendem a grande verdade que é
serem habitados pelo Espírito Santo,
que os capacita a clamar “Aba, Pai”.
Encontram-se, no que diz respeito à sua
experiência, sob a lei; na realidade,
nunca entraram na profundidade da
bênção que é estar sob o reinado da
graça. Eles têm vida. É impossível
duvidar disso. Eles amam as coisas
divinas; suas preferências, seus hábitos,
suas aspirações – sim, até mesmo seus
exercícios, conflitos, ansiedades,
dúvidas e temores, tudo isso demonstra
a existência de vida divina. Eles se
encontram, de um certo modo, separados
do mundo, mas sua separação é mais
negativa que positiva. É mais por verem
a completa vaidade do mundo, e sua
inabilidade em satisfazer seus corações,
do que por terem encontrado em Cristo
um objetivo. Perderam o gosto pelas
coisas do mundo, mas não encontraram
seu lugar e porção no Filho de Deus
onde Ele agora está à destra de Deus. As
coisas do mundo não podem satisfazêlos,
e não se encontram desfrutando da
posição, objetivo e esperança celestiais
que lhes são próprias; portanto, se
encontram em uma condição totalmente
anômala; não têm certeza, nem descanso,
nem constância de propósitos; não são
felizes; não conhecem qual o verdadeiro
ponto de apoio; não são nem uma coisa
nem outra.
Será que é assim com o leitor?
Esperamos sinceramente que não.
Cremos que o leitor seja um daqueles
que, por graça infinita, conhecem “o que
nos é dado gratuitamente por Deus” (1
Coríntios 2.12); que sabem haver
passado da morte para a vida – que têm
vida eterna; que desfrutam do precioso
testemunho do Espírito; que entendem
sua associação com uma Cabeça
ressurreta e glorificada nos céus, a
Quem estão ligados pelo Espírito Santo,
que neles habita; que encontraram seu
objetivo na Pessoa daquele Ser bendito
cuja obra consumada é a base divina e
eterna de sua salvação e paz; e que estão
sinceramente ansiando pelo bendito
momento quando Jesus virá para recebêlos
para Si mesmo, para que onde Ele
estiver, eles possam estar também, para
de lá nunca mais saírem, eternamente.
Isto é cristianismo. Nada mais merece
este nome. É algo que permanece em
evidente e notável contraste com a
religiosidade espúria de nossos dias, a
qual não é nem puro judaísmo, nem puro
cristianismo, mas uma péssima mistura,
composta de alguns elementos de cada,
cujo povo inconverso pode adotar e
seguir, pois concede liberdade às
concupiscências da carne e lhes permite
desfrutar dos prazeres e vaidades do
mundo, em busca de contentamento para
seus corações. O arqui-inimigo de
Cristo e das almas foi bem sucedido ao
produzir um horrível sistema de
religião, meio judaico, meio cristão,
combinando, da maneira mais
habilidosa, o mundo e a carne, com um
certo montante de passagens das
Escrituras, utilizadas de modo a destruir
sua força moral e impedir sua correta
aplicação. As almas ficam, assim,
emaranhadas e sem esperança. Por um
lado os inconversos são enganados com
a ideia de que são cristãos realmente
muito bons, e que estão seguindo direto
para o céu; e, por outro lado, o querido
povo do Senhor é roubado de seu lugar e
privilégios que lhe são próprios, e
arrastados para baixo pela escura e
depressiva influência da atmosfera
religiosa que o cercam e quase o
sufocam.
Não está, cremos, ao alcance da língua
humana expressar as aterrorizantes
consequências dessa mistura do povo de
Deus com o povo do mundo em um
sistema comum de religiosidade e
crença teológica. Seu efeito sobre os
que pertencem ao povo de Deus é o de
cegar seus olhos para as glórias morais
do cristianismo, como são apresentadas
nas páginas do Novo Testamento; e isto
a um ponto tal que se alguém tentar
desvendar essas glórias aos seus olhos,
será reputado como um entusiasta
visionário ou um perigoso herege. O
efeito de tudo isso, sobre os que
pertencem ao mundo, é o de enganá-los
totalmente quanto à sua verdadeira
condição, caráter e destino. Ambas as
classes de pessoas recitam as mesmas
fórmulas, compartilham do mesmo
credo, fazem as mesmas orações, são
membros da mesma comunidade, tomam
parte do mesmo sacramento, estão, em
suma, eclesiasticamente, teologicamente,
religiosamente unidas.
Talvez se diga em resposta a tudo isso,
que nosso Senhor, em Seu maravilhoso
sermão de Mateus 13, ensina de modo
distinto que o trigo e o joio devem ser
deixados a crescer juntos. Sim; mas
onde? Na Igreja? Não; mas “no
campo”; e Ele nos diz que “o campo é o
mundo”. Confundir estas coisas é
falsificar a posição cristã como um todo,
e se livrar de toda a piedosa disciplina
que deve ser exercida na assembleia. É
colocar o ensino de nosso Senhor em
Mateus 13 em oposição ao ensino do
Espírito Santo em 1 Coríntios 5.
Todavia, não vamos nos deter mais
neste assunto. Ele é importante e extenso
demais para ser tratado em um artigo tão
breve quanto este. Talvez venhamos a
discuti-lo melhor em alguma outra
ocasião. Estamos completamente
convencidos de que ele exige a
consideração séria do leitor cristão,
apoiado, como está de modo tão
manifesto, na glória de Cristo, nos
verdadeiros interesses do Seu povo, no
progresso do evangelho, na integridade
do testemunho e serviço cristãos, de
modo que seria praticamente impossível
superestimar a sua importância. Mas
devemos deixá-lo por enquanto, e
direcionar este artigo para seu
encerramento com uma breve referência
ao terceiro e último ramo de nosso
assunto, a saber, a Palavra de Cristo
como o guia todo-suficiente para nosso
caminho.
Se a obra de Cristo é suficiente para a
consciência, se Sua bendita Pessoa é
suficiente para o coração, então, com
toda a certeza, a Sua preciosa Palavra é
suficiente para o caminho. Podemos
admitir, com toda a confiança possível,
que possuímos no divino volume das
Sagradas Escrituras tudo o que
poderíamos precisar, não apenas para
atender as necessidades de nossa senda
individual, mas também para as variadas
necessidades da Igreja de Deus, nos
mínimos detalhes de sua história neste
mundo.
Estamos bem cientes de que ao fazermos
uma tal afirmação nos expomos a muita
zombaria e oposição, vindas de mais de
uma direção. Seremos confrontados, por
um lado, com os que defendem a
tradição e, por outro, por aqueles que
lutam pela supremacia do raciocínio e
vontade humana; mas isto nos deixa
verdadeiramente muito pouco
preocupados. Consideramos as
tradições dos homens, sejam eles pais,
irmãos ou doutores, quando
apresentadas como sendo de alguma
autoridade, como uma partícula de
poeira na balança; e no que se refere ao
raciocínio humano, só pode ser
comparado ao morcego, ao sol do meiodia,
cego pela luz, e se lançando contra
obstáculos que não pode ver.
É do mais profundo gozo para o coração
do cristão poder se desvencilhar das
conflitantes tradições e doutrinas dos
homens e entrar na tranquila luz das
Sagradas Escrituras; e quando diante
dos impudentes raciocínios do ímpio, do
racionalista, do cético, sujeitar todo o
seu ser moral à autoridade e poder das
Sagradas Escrituras. Ele reconhece, com
gratidão, na Palavra de Deus o único
padrão perfeito para doutrina, moral, e
tudo mais. “Toda a Escritura é
divinamente inspirada, e proveitosa
para ensinar, para redarguir, para
corrigir, para instruir em justiça; para
que o homem de Deus seja perfeito, e
perfeitamente instruído para toda a
boa obra” (2 Timóteo 3.16,17).
De que mais podemos precisar? De
nada. Se as Escrituras podem tornar um
menino “sábio para a salvação”, e se
elas podem tornar um homem “perfeito
e perfeitamente instruído para toda a
boa obra”, o que é que queremos com a
tradição ou com o raciocínio humano?
Se Deus escreveu um volume para nós,
se Ele condescendeu em nos dar uma
revelação do Seu pensamento, quanto a
tudo o que devemos conhecer, pensar,
sentir, crer e fazer, iríamos nós nos
voltar para um pobre mortal nosso
semelhante – seja ele ritualista ou
racionalista – para nos ajudar? Longe de
nós um tal pensamento! Seria o mesmo
que nos voltarmos ao nosso semelhante
a fim de acrescentarmos algo à obra
consumada de Cristo; a fim de fazê-la
suficiente para a nossa própria
consciência, ou suprir o necessário para
cobrir alguma deficiência que
encontrássemos na Pessoa de Cristo,
visando fazer dele um objeto que fosse
suficiente para nosso coração. Seria
como nos entregarmos à tradição ou ao
raciocínio humano para suprir alguma
deficiência que encontrássemos na
revelação divina.
Todo louvor e graças sejam ao nosso
Deus por não ser este o caso. Ele nos
deu, em Seu amado Filho, tudo o que
necessitamos para a consciência, para o
coração, para o caminho aqui – para o
tempo, com todos os seus cenários em
constante mutação – para a eternidade,
com suas eras incontáveis.
Podemos dizer:
Tu, Oh, Cristo, és tudo de que
precisamos;
Mais que tudo em Ti encontramos.
Não há, e nem poderia existir, qualquer
falta no Cristo de Deus. Sua expiação e
Sua intercessão devem satisfazer todos
os anseios da consciência mais
profundamente exercitada. As glórias
morais – a poderosa atração de Sua
divina Pessoa – devem satisfazer as
mais intensas aspirações e desejos do
coração. E sua inigualável revelação –
esse volume sem preço – contém entre
suas capas tudo o que possamos
necessitar, do princípio ao fim de nossa
carreira cristã.
Leitor cristão: acaso essas coisas não
são assim? Acaso você não reconhece a
verdade que há nelas, do mais íntimo do
seu ser moral renovado? Se assim for,
será que você está descansando, em
tranquilo repouso, na obra de Cristo?
Está se deleitando em Sua Pessoa? Está
se sujeitando, em todas as coisas, à
autoridade da Sua Palavra? Deus queira
que assim possa ser com você, e com
todos os que professam o Seu nome!
Possa haver um testemunho cada vez
mais pleno, mais claro e mais decidido
para a total suficiência de Cristo, até
aquele dia.