23/12/2015 10:58
Havendo procurado descortinar, nos três
capítulos anteriores, as grandes
verdades fundamentais ligadas à obra de
Cristo por nós – Sua obra no passado e
sua obra no presente – Sua expiação e
Sua intercessão, devemos agora
procurar, pela graciosa ajuda do
Espírito de Deus, apresentar ao leitor
algo daquilo que as Escrituras nos
ensinam quanto ao segundo ramo de
nosso assunto, a saber, Cristo como um
objeto para o coração.
Trata-se de algo maravilhosamente
bendito poder dizer: “Encontrei
Alguém que satisfaz perfeitamente
meu coração – encontrei a Cristo”. É
isto o que nos coloca verdadeiramente
acima do mundo. Nos torna
completamente independentes dos
recursos, aos quais o coração
inconverso sempre se apega. Nos
concede um descanso permanente. Nos
dá uma calma e quietude de espírito que
o mundo não pode compreender. O
pobre amante do mundo pode pensar que
a vida do verdadeiro cristão é muito
parada, insípida, chegando até mesmo a
ser uma ocupação idiota. Talvez ele
fique espantado de ver como alguém
pode seguir adiante sem aquilo que ele
chama de diversão, distração e prazer;
sem teatros, sem festas ou jogos de bola,
sem concertos, sem baralho ou bilhar,
sem caçadas ou corridas, sem clube ou
bate-papo, sem campeonatos de
críquete.
Privar o inconverso dessas coisas seria
quase o mesmo que levá-lo ao
desespero ou à loucura; mas o cristão
não deseja tais coisas – ele não as
praticaria. Elas seriam até mesmo um
aborrecimento para ele. Falamos aqui,
evidentemente, do verdadeiro cristão, de
alguém que não é meramente cristão de
nome, mas de verdade. Oh, há muitos
que professam ser cristãos, e até ocupam
uma posição elevada em sua profissão
cristã, e que, todavia, encontram-se
misturados em todas as buscas vãs e
frívolas dos homens deste mundo.
Pessoas assim podem ser encontradas à
mesa de comunhão no dia do Senhor, e
no teatro ou em um concerto na segundafeira;
podem ser vistas tomando parte
em algum dos ramos da obra cristã no
domingo, e durante a semana podem ser
encontradas no salão de bilhar, no
hipódromo ou em algum outro cenário
de vaidade e futilidade.
É mais do que evidente que uma tal
pessoa não sabe nada de Cristo como
um objeto para o coração. Pode-se até
questionar como é que alguém com uma
única centelha de vida divina na alma
possa achar prazer nos desprezíveis
anseios de um mundo ímpio. O cristão
sincero e verdadeiro desvia-se
instintivamente; e isso não meramente
por causa do erro ou do mal que há
nessas coisas – apesar dele certamente
sentir que são coisas erradas e más –
mas porque ele não tem nenhum gosto
por elas, e porque encontrou algo
infinitamente superior, algo que satisfez
perfeitamente todos os desejos da nova
natureza. Poderíamos imaginar um anjo
do céu tendo prazer em um jogo de bola,
em um teatro ou em uma corrida? O
simples pensamento disso já é
sobremaneira ridículo. Lugares assim
são totalmente estranhos a um ser
celestial.
E o que é um cristão? É um homem
celestial; um participante da natureza
divina. Ele está morto para o mundo –
morto para o pecado – vivo para Deus.
Não tem nem mesmo uma única ligação
com o mundo: pertence ao céu. Assim
como Cristo, seu Senhor, ele não
pertence mais ao mundo. Poderia Cristo
tomar parte nos divertimentos,
brincadeiras e festejos deste mundo? A
própria ideia disso seria uma blasfêmia.
Bem, então, o que dizer do cristão? Será
que é para ele ser encontrado em lugares
onde o seu Senhor não estaria? Pode ele
tomar parte em coisas que ele sabe em
seu coração serem contrárias a Cristo?
Pode ele ir a lugares, frequentar
ambientes e se envolver em
circunstâncias onde, ele tem que admitir,
seu Salvador e Senhor não podem tomar
parte? Pode ele ter comunhão com um
mundo que odeia Aquele a Quem ele
professa dever todas as coisas?
Talvez a alguns de nossos leitores possa
parecer que estamos falando de um
terreno muito elevado. A estes
perguntaremos: Que terreno devemos
tomar? Certamente, terreno cristão, se
somos cristãos. Bem, então, se devemos
assumir uma posição cristã, como
podemos saber o que é uma posição
cristã? Evidentemente buscando no
Novo Testamento. E o que é que ele
ensina? Acaso ele dá qualquer
autorização para que o cristão se
misture, em qualquer forma ou medida,
com os divertimentos e os vãos anseios
deste presente século mau? Escutemos
com atenção as importantes palavras de
nosso bendito Senhor em João 17.
Escutemos de Seus próprios lábios a
verdade quanto à nossa porção, nossa
posição, e nosso caminho aqui neste
mundo. Ao se dirigir ao Pai, Ele diz:
“Dei-lhes a Tua palavra, e o mundo os
odiou, porque não são do mundo,
assim como Eu não sou do mundo.
Não peço que os tires do mundo, mas
que os livres do mal. Não são do
mundo, como Eu do mundo não sou.
Santifica-os na verdade; a Tua Palavra
é a verdade. Assim como Tu Me
enviaste ao mundo, também Eu os
enviei ao mundo” (João 17.14-18).
Será possível conceber uma medida
mais próxima de identificação do que a
que nos é apresentada nestas palavras?
Por duas vezes, nesta breve passagem,
nosso Senhor declara que não somos do
mundo, assim como Ele não é. O que é
que nosso bendito Senhor tinha a ver
com o mundo? Nada. O mundo O
rejeitou completamente e o expulsou. O
mundo pregou-O numa vergonhosa cruz,
entre dois malfeitores. O mundo
continua tão atual e plenamente sob a
acusação de tudo isso como se o ato da
crucificação tivesse ocorrido ontem,
bem no centro de sua civilização e com
o consentimento unânime de todos. Não
existe nem mesmo um único vínculo
moral entre Cristo e o mundo. Sim, o
mundo está manchado com Seu
assassinato, e nada terá a dizer a Deus
por seu crime.
Quão solene é isto! Que assunto sério
para ser considerado pelos cristãos!
Estamos passando por um mundo que
crucificou a nosso Senhor e Mestre, e
Ele declara que não somos deste mundo,
assim como Ele não é. Daí vem que se
tivermos alguma comunhão com o
mundo estaremos sendo falsos para com
Cristo. O que pensaríamos de uma
esposa que se sentasse, e risse, e
contasse anedotas com um grupo de
homens que tivesse assassinado seu
marido? E é exatamente o que os
cristãos professos estão fazendo quando
se misturam com o presente mundo mau,
e se fazem parte e porção dele.
Talvez alguém pergunte: O que devemos
fazer? Devemos sair do mundo? De
modo nenhum. Nosso Senhor diz
expressamente: “Não peço que os tires
do mundo, mas que os livres do mal”
(João 17.15). No mundo, mas não do
mundo, é o verdadeiro princípio para o
cristão. Para nos valermos de uma
figura, o cristão no mundo é como um
mergulhador equipado com um
escafandro. Ele está imerso em um
elemento que o destruiria, se não
estivesse protegido de sua ação, e
mantido por uma contínua comunicação
com o cenário que está acima dele.
E o que deve o cristão fazer com o
mundo? Qual é a sua missão aqui? Esta:
“Assim como Tu me enviaste ao mundo,
também Eu os enviei ao mundo”.
“Assim como o Pai Me enviou, também
Eu vos envio a vós” (João 17.18;
20.21).
Tal é a missão do cristão. Ele não deve
se trancar entre as paredes de um
mosteiro ou convento. O cristianismo
não consiste em se fazer membro de uma
irmandade, como monges ou freiras.
Nada disso. Somos chamados para
estarmos ocupados nas diversas
responsabilidades da vida, e para
agirmos nas esferas que nos são
divinamente designadas, para a glória de
Deus. Não é uma questão do que
estamos fazendo, mas de como estamos
fazendo. Tudo depende do objeto que
governa nossos corações. Se for Cristo
o que comanda e cativa o coração, tudo
estará bem; se não for Ele, nada estará
bem. Duas pessoas podem se sentar à
mesma mesa para comer; uma come para
satisfazer seu apetite, a outra come para
a glória de Deus – come simplesmente
para conservar seu corpo em forma
como vaso de Deus, como templo do
Espírito Santo, instrumento para o
serviço de Cristo.
Assim deve ser em todas as coisas.
Trata-se de nosso doce privilégio
colocarmos o Senhor sempre diante de
nós. Ele é nosso modelo. Assim como
Ele foi enviado ao mundo, nós o somos
também. O que foi que Ele veio fazer?
Glorificar a Deus. Como foi que Ele
viveu? Pelo Pai. “Assim como o Pai,
que vive, Me enviou, e Eu vivo pelo
Pai, assim quem de Mim se alimenta,
também viverá por Mim” (João 6.57).
Isso torna tudo muito simples. Cristo é o
padrão e o gabarito para tudo. Já não se
trata meramente de uma questão de certo
e errado de acordo com as regras
humanas; é simplesmente uma questão
do que é digno de Cristo. Será que Ele
faria isso ou aquilo? Será que Ele iria
ali ou acolá? Ele deixou-nos “o
exemplo, para que sigais as Suas
pisadas” (1 Pedro 2.21). E com toda a
certeza, nunca deveríamos ir aonde não
pudéssemos enxergar suas benditas
pegadas. Se vamos de um lado para o
outro unicamente para satisfazer a nós
mesmos, não estamos seguindo Suas
pisadas, e não podemos esperar
desfrutar de sua bendita presença.
Aqui está o verdadeiro segredo do
assunto todo. A grande questão é só
esta: É Cristo o meu objeto? Para que
estou vivendo? Será que posso dizer que
“a vida que agora vivo na carne, vivoa
na fé do Filho de Deus, O qual me
amou, e Se entregou a Si mesmo por
mim” (Gálatas 2.20)? Nada menos do
que isto é o que cabe a um cristão.
Trata-se de algo demasiadamente
miserável estar contente apenas em ser
salvo, e então seguir adiante de braços
dados com o mundo, vivendo para a
satisfação própria e em busca de seus
próprios interesses – aceitar a salvação
como o fruto da paixão e tribulação de
Cristo, e depois viver longe dele. O que
iríamos pensar de uma criança que só se
importa com as coisas boas que seu pai
lhe dá, e que nunca procura a companhia
de seu pai – sim, que prefere até a
companhia de estranhos? Certamente
seria alguém digno de desprezo; mas
quão mais desprezível é o cristão que
deve todo o seu presente e todo o seu
futuro eterno à obra de Cristo e, ainda
assim, se contenta em viver a uma fria
distância de Sua bendita Pessoa, sem se
preocupar nem um pouco com a
promoção da Sua causa – com a
promoção da Sua glória!