26/12/2015 09:18
Que pensamentos e sentimentos diversos
são despertados na alma pelo simples
ouvir da palavra "cristandade"! Trata-se
de uma palavra terrível. Ela coloca diante
de nós, de uma só vez, aquela imensa
massa de pessoas professas e batizadas
que se denominam a si mesmos Igreja de
Deus, mas que não são; que dão a si
mesmas o título de cristianismo, mas não
são. Cristandade é uma terrível e sombria
anomalia. Não é uma coisa nem outra.
Não é judeu, nem gentio, nem Igreja de
Deus. Trata-se de uma misteriosa mistura
corrompida, uma deformação espiritual, a
obra prima de Satanás, o corruptor da
verdade de Deus e destruidor de almas
humanas, uma armadilha, um engano,
uma pedra de tropeço, a mais sombria
mancha moral no universo de Deus.
Trata-se da corrupção de nada menos do
que aquilo que há de melhor e, por isso, é
a pior das corrupções. Trata-se daquilo
que Satanás fez a partir do cristianismo
professo. É, de longe, pior que o
judaísmo, pior que todas as mais
sombrias formas de paganismo. Por
possuir uma luz mais elevada e privilégios
mais ricos, isto a torna a profissão mais
elevada e faz com que ocupe o mais
eminente lugar. Finalmente, é para essa
horrível apostasia que estão reservados os
mais pesados juízos de Deus — a mais
amarga borra da taça de Sua justa ira.
Há, bendito seja Deus, alguns poucos
nomes na cristandade que, por graça, não
contaminaram suas vestes. Há algumas
brasas vivas entre suas cinzas inertes —
pedras preciosas entre o horrível entulho.
Todavia, no que diz respeito à massa da
profissão cristã à qual o termo
cristandade se aplica, nada pode ser mais
consternador, quer pensemos em sua
condição atual ou em seu destino futuro.
Duvidamos que os cristãos, de um modo
geral, tenham uma percepção clara do
verdadeiro caráter e inevitável ruína
daquilo que os cerca. Se tivessem,
ficariam preocupados e sentiriam a
necessidade premente de se manterem à
parte, em santa separação, dos caminhos
da cristandade, em um claro testemunho
contra seu espírito e princípios.
Mas vamos voltar ao profundo discurso
de nosso Senhor no Monte das Oliveiras,
no qual, como já observamos, Ele trata da
questão da profissão cristã. Ele faz isso
em três parábolas distintas, a saber, a do
servo, das dez virgens e dos talentos. Em
cada uma e em todas vemos as mesmas
duas coisas que foram mostradas acima, o
genuíno e o espúrio, o verdadeiro e o
falso, o brilhante e o sombrio, aquilo que
é de Cristo e aquilo que é de Satanás,
aquilo que pertence ao Céu e aquilo que
emana do inferno.
Devemos olhar de relance para as três
parábolas que contêm, apesar de sua
brevidade, um imenso manancial de
ensino prático e dos mais solenes.
Abram em Mateus 24:45-47. "Quem é,
pois, o servo fiel e prudente, que o seu
senhor constituiu sobre a sua casa, para
dar o sustento a seu tempo? Bemaventurado
aquele servo que o seu
senhor, quando vier, achar servindo
assim. Em verdade vos digo que o porá
sobre todos os seus bens".
Aqui, portanto, temos definida a fonte e
objetivo de todo ministério na casa de
Deus. "Que o seu senhor constituiu sobre a
sua casa". Esta é a fonte. "Para dar o
sustento a seu tempo". Este é o objetivo.
Estas coisas são da mais alta importância
e dignas da mais profunda atenção do
leitor. Todo ministério na casa de Deus,
seja nos dias do Antigo ou do Novo
Testamento, é por ordenação divina. Não
existe nas Escrituras algo como uma
autoridade humana ordenando alguém
para o ministério. Tampouco existe algo
como um ministério auto constituído.
Ninguém além de Deus pode fazer ou
ordenar um ministro, qualquer que seja
seu tipo ou qualificação. Assim, nos
tempos do Antigo Testamento, Jeová
ordenou Aarão e seus filhos para o
sacerdócio e, se um estranho pretendesse
se infiltrar nas funções do santo ofício,
deveria ser condenado à morte. Nem
mesmo o próprio rei ousava tocar no
incensório sacerdotal, pois nos é dito de
Uzias, rei de Judá, que "havendo-se já
fortificado, exaltou-se o seu coração até se
corromper; e transgrediu contra o Senhor
seu Deus, porque entrou no templo do
Senhor para queimar incenso no altar do
incenso. Porém o sacerdote Azarias
entrou após ele, e com ele oitenta
sacerdotes do Senhor, homens valentes. E
resistiram ao rei Uzias, e lhe disseram: A
ti, Uzias, não compete queimar incenso
perante o Senhor, mas aos sacerdotes,
filhos de Arão, que são consagrados para
queimar incenso; sai do santuário, porque
transgrediste; e não será isto para honra
tua da parte do SENHOR Deus... Assim
ficou leproso o rei Uzias até ao dia da sua
morte" (2 Cr 26:16-21).
Tal foi o solene resultado — a terrível
consequência de alguém ousar se
intrometer naquilo que era uma
ordenação totalmente divina. Acaso isto
não tem algo a dizer à cristandade?
Certamente. É algo que emite uma nota
de alerta, que diz à Igreja professa, em
alto e bom som, para tomar cuidado com
a intromissão humana em uma área que
pertence apenas a Deus. "Porque todo o
sumo sacerdote, tomado dentre os
homens, é constituído a favor dos homens [e
não por homens] nas coisas concernentes a
Deus, para que ofereça dons e sacrifícios
pelos pecados... e ninguém toma para si esta
honra, senão o que é chamado [não por
homens, mas] por Deus, como Arão" (Hb
5).
Tampouco estava este princípio de
ordenação divina restrito ao santo e
elevado ofício do tabernáculo. Homem
algum ousava colocar sua mão na menor
parte que fosse daquela estrutura sagrada
a menos que tivesse autoridade recebida
diretamente de Jeová. "Depois falou o
Senhor a Moisés, dizendo: Eis que Eu
tenho chamado por nome a Bezalel, o filho
de Uri, filho de Hur, da tribo de Judá"
(Êx 31). E nem Bezalel poderia escolher
seus companheiros no trabalho, ou
ordenar quem quisesse para trabalhar, do
mesmo modo como não poderia ter
escolhido ou ordenado a si mesmo. Não,
isso também era uma prerrogativa divina.
"E eis que eu", diz Jeová, "tenho posto com
ele a Aoliabe". Assim tanto Aoliabe como
Bezalel receberam sua comissão
diretamente do próprio Jeová, a única
fonte de toda autoridade ministerial.
E nem podia ser diferente no caso do
ministério e do ofício profético. Só Deus
poderia fazer, preparar e enviar um
profeta. Oh, mas havia aqueles dos quais
Jeová precisava dizer: "Não mandei esses
profetas, contudo eles foram correndo"
(Jr 23:21). Eram pessoas não consagradas
se intrometendo no campo da profecia,
assim como aqueles que se intrometiam
no ofício do sacerdócio. Todavia, todos
atraíram para si mesmos o juízo de Deus.
Será que este grande princípio mudou?
Acaso o ministério foi tirado de seu
antigo fundamento? Porventura o
manancial de águas vivas foi desviado de
sua divina fonte? Será que esta instituição
tão gloriosa e preciosa foi despojada de
sua sublime dignidade? Seria possível que,
na época do Novo Testamento, o
ministério tivesse sido rebaixado de sua
divina excelência? Teria ele se
transformado numa mera ordenação
humana? Poderia alguém ordenar seu
companheiro, ou ordenar a si próprio,
para qualquer ministério na casa de Deus?
Que resposta devemos dar a estas
perguntas? Sem dúvida alguma, e graças a
Deus por isso, nenhuma outra resposta há
senão um claro e enfático Não! O
ministério era, é e sempre será divino;
divino em sua fonte, divino em sua
natureza, divino em cada princípio e
aspecto. "Ora, há diversidade de dons,
mas o Espírito é o mesmo. E há
diversidade de ministérios, mas o Senhor
é o mesmo. E há diversidade de
operações, mas é o mesmo Deus que
opera tudo em todos" (1 Co 12:4-6). "Mas
agora Deus colocou os membros no
corpo, cada um deles como quis... E a uns
pôs Deus na igreja, primeiramente
apóstolos, em segundo lugar profetas, em
terceiro doutores, depois milagres, depois
dons de curar, socorros, governos,
variedades de línguas" (1 Co 12:18, 28).
"Mas a graça foi dada a cada um de nós
segundo a medida do dom de Cristo. Por
isso diz: Subindo ao alto, levou cativo o
cativeiro, e deu dons aos homens... E ele
mesmo deu uns para apóstolos, e outros
para profetas, e outros para evangelistas, e
outros para pastores e doutores,
querendo o aperfeiçoamento dos santos,
para a obra do ministério, para edificação
do corpo de Cristo; até que todos
cheguemos à unidade da fé, e ao
conhecimento do Filho de Deus, a
homem perfeito, à medida da estatura
completa de Cristo" (Ef 4:7-13).
Eis a grande fonte de todo ministério na
Igreja de Deus, do primeiro ao último —
do alicerce estabelecido em graça, até a
pedra do topo, em glória. Não vem do
homem e nem é ordenado pelo homem,
mas é de Jesus Cristo, e de Deus Pai que
O ressuscitou dentre os mortos, e no
poder do Espírito Santo (veja Gálatas 1).
Não há nas Escrituras qualquer coisa
referente a algum tipo de autoridade
humana em qualquer área do ministério
na Igreja. Se for uma questão de dom,
está enfaticamente declarado que se trata
de dom de Cristo. Se for uma questão de
posição ordenada, nos é dito, com igual
clareza e ênfase, que Deus coloca os
membros. Se for uma questão de
responsabilidade local, seja ela de ancião
ou diácono, trata-se de uma designação
exclusivamente divina, exercida por mão
dos apóstolos ou daqueles por eles
delegados.
Tudo isso está tão claro, tão definido, tão
palpável nas páginas das Escrituras que a
única coisa que se pode dizer é: "Como
lês?". E quanto mais penetramos sob a
superfície — quanto mais somos guiados
pelo Espírito Eterno nas mais preciosas e
profundas regiões da inspiração — mais
convencidos ficaremos de que o
ministério, em cada uma de suas áreas e
aspectos, é divino em sua fonte, natureza
e princípios. A verdade a este respeito
resplandece em todo o seu fulgor nas
Epístolas, mas temos sua essência nas
palavras de nosso Senhor em Mateus
25:45: "Que o seu senhor constituiu sobre
a sua casa". A casa pertence ao Senhor e
somente Ele pode designar Seus servos, o
que Ele faz conforme Sua vontade
soberana.
Igualmente claro é o assunto do
ministério, conforme é declarado na
parábola e desenvolvido nas Epístolas.
"Para dar o sustento a seu tempo". "Para
edificação do corpo de Cristo" — "para
que a igreja receba edificação". É isto que
está junto ao terno coração de Jesus. Ele
queria que Sua casa fosse aprimorada, que
Sua Igreja fosse edificada, que Seu corpo
fosse alimentado e cuidado. Para este fim,
Ele deu dons e os mantêm na Igreja, e irá
mantê-los até que não sejam mais
necessários.
Mas, oh!, existe um lado sombrio nesse
quadro. Devemos estar preparados para
isso, já que temos diante de nós o quadro
da cristandade. Se existe um servo fiel,
sábio e bendito, existe também um servo
mau que, no seu coração diz: "O meu
senhor tarde virá". Preste atenção nisto. É
no coração do servo mau que o pensamento
da demora da vinda tem sua origem.
E qual é o resultado? Ele começa "a
espancar os seus conservos, e a comer e a
beber com os ébrios". Não precisamos
comentar o modo terrível como isso tem
sido retratado na história da cristandade.
Ao invés de um verdadeiro ministério
fluindo da Cabeça ressuscitada e
glorificada nos céus, promovendo a
edificação do corpo, a bênção das almas e
a prosperidade da casa, temos uma falsa
autoridade clerical, um governo
arbitrário, se assenhoreando da herança
de Deus, numa ávida busca pela riqueza e
poder seculares, pela permissividade
mundana e satisfação dos próprios
desejos, exaltação pessoal e domínio
sacerdotal das mais variadas e imagináveis
formas e resultados.
O leitor fará bem se aplicar seu coração
em compreender estas coisas. Para isto
deverá apreender, com clareza e poder, a
diferença entre clericalismo e ministério.
O primeiro não passa de pretensão
humana; o último é uma instituição
puramente divina. O primeiro tem sua
fonte no coração do homem mau; o
último provém de um Salvador
ressuscitado e exaltado que, depois de
ressuscitado dentre os mortos, recebeu
dons para serem dados aos homens e os
derrama sobre Sua Igreja conforme a Sua
própria vontade. O primeiro é
verdadeiramente um flagelo e maldição; o
último, uma bênção divina dada aos
homens. Este, em sua essência, flui
primorosamente do céu e para lá retorna;
aquele, flui do inferno que é a sua origem
e é para lá que retorna.
Tudo isso é extremamente solene e
deveria exercer uma poderosa influência
em nossa alma. Está chegando o dia
quando Cristo, o Senhor, irá tratar com
justiça sumária tudo aquilo que o homem
ousou estabelecer em Sua casa. Não
falamos aqui de indivíduos — apesar de
ser algo muito sério e terrível alguém
praticar ou se envolver com aquilo sobre
o que um julgamento tão medonho está
para cair. Falamos de um sistema — um
grande princípio que se espalha, em uma
corrente profunda e sombria, por toda a
extensão da Igreja professa — falamos do
clericalismo e do poder sacerdotal, em
todas as suas formas e ramificações.
É contra essa coisa terrível que
solenemente alertamos nossos leitores.
Nenhuma linguagem humana seria capaz
de descrever o mal que há nisso,
tampouco pode a linguagem humana
expor adequadamente a profunda bênção
do genuíno ministério na Igreja de Deus.
O Senhor Jesus não apenas concede os
dons ministeriais, mas, em Sua
maravilhosa graça, recompensará
abundantemente o exercício fiel e
diligente desses dons. Todavia, no que diz
respeito àquilo que o homem estabeleceu,
lemos acerca de seu destino nestas
veementes palavras: "Virá o senhor
daquele servo num dia em que o não
espera, e à hora em que ele não sabe, e
separá-lo-á, e destinará a sua parte com os
hipócritas; ali haverá pranto e ranger de
dentes".
Que o gracioso Senhor possa livrar Seus
servos e Seu povo de qualquer
participação nessa grande impiedade que
tem penetrado até mesmo no seio daquilo
que se denomina a Igreja de Deus. E, por
outro lado, que Ele possa levá-los a
compreender, a apreciar e a exercitar
aquele verdadeiro, precioso e divino
ministério que emana de Si próprio e é
designado, em Seu infinito amor para a
verdadeira bênção e crescimento dessa
Igreja que é tão cara ao Seu coração.
Enquanto buscamos nos manter longe do
mal do clericalismo (como certamente
devemos fazer), corremos o risco —
deveras um grande risco — de cairmos
no extremo oposto, que é o de desprezar
o ministério.
Isto deve ser cuidadosamente evitado.
Devemos sempre ter em mente que o
ministério adequado à Igreja é o
ministério vindo de Deus. Sua fonte é
divina. Sua natureza é celestial e
espiritual. Seu objetivo é reunir, é edificar
a Igreja de Deus. Nosso Senhor Jesus
Cristo concede os diversos dons —
evangelistas, pastores e mestres ou
doutores. É dEle o grande reservatório de
dons espirituais. Ele nunca abriu mão
disso e nem abrirá. Apesar de tudo aquilo
que Satanás tem feito na Igreja professa;
apesar de todos os feitos daquele "servo
mau"; apesar de toda a pretensa
usurpação de autoridade do homem que
de forma alguma lhe pertence; apesar de
tudo isso, nosso Senhor ressuscitado e
glorificado tem as "sete estrelas". É dEle
que provêm todos os dons de ministério,
todo o poder e autoridade. Só Ele pode
fazer de alguém um ministro. Se Ele não
conceder um dom, não pode existir um
ministério genuíno. Pode existir a vã
pretensão — a usurpação culposa, a
simulação vazia, o discurso inútil — mas
não haverá um átomo sequer de
ministério verdadeiro, divino e terno,
exceto onde nosso soberano Senhor
quiser conceder o dom. E até mesmo
onde Ele concede o dom, esse dom deve
ser "despertado" e diligentemente
cultivado, caso contrário o
"aproveitamento" não será "manifesto a
todos". O dom deve ser exercitado no
poder do Espírito Santo, ou não
promoverá o objetivo para o qual foi
divinamente designado.
Mas estamos apenas antecipando o que
ainda está para nos ser apresentado na
parábola dos talentos, por isso
terminaremos aqui simplesmente
lembrando o leitor que o grave assunto
com o qual nos ocupamos tem ligação
direta com a vinda de nosso Senhor,
ainda mais considerando que todo
ministério genuíno é exercido tendo em
vista aquele grande e glorioso evento. E
não apenas isto, mas aquela imitação,
aquela coisa corrupta e má, será
judicialmente tratada quando Cristo, o
Senhor, surgir em Sua glória.